O governo vai enfrentar forte resistência na base aliada para aprovar a proposta de reforma sindical apresentada ontem à Câmara. O descontentamento dos sindicatos com o fortalecimento das centrais sindicais na negociação trabalhista é compartilhado por governistas no Congresso, que ameaçam derrubar o texto entregue pelo ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini.
Os aliados já trabalham com um projeto de lei que caminha na contramão das pretensões do Planalto. O autor da proposta, deputado Sérgio Miranda (PCdoB-MG), que integra a base aliada, acusa o governo de enfraquecer o poder de negociação dos sindicatos e de precipitar a flexibilização da legislação trabalhista.
“A reforma sindical já é a reforma trabalhista. Ao considerar que os acordos têm o mesmo poder do sistema legal, essa proposta de emenda constitucional diz claramente que o negociado se sobrepõe ao legislado. O que se pretende é fazer a reforma trabalhista já na sindical. O resto será detalhe”, considera.
O projeto de Miranda não altera a estrutura sindical vigente, mas regulamenta 17 dispositivos relacionados aos direitos dos trabalhadores ou dos sindicatos, previstos na Constituição. O texto mantém a cobrança do imposto sindical e a proibição de existência de mais de um sindicato por categoria na mesma base territorial
O problema é que a modificação desses dois pontos é considerada fundamental pelo governo para reestruturar o modelo sindical no país. Seria a forma de acabar com as entidades sem grande representação e que se mantêm com o único objetivo de arrecadar a contribuição compulsória de associados ou não, sustenta o ministro do Trabalho. Sem essas mudanças, segundo ele, o governo não aceita sequer discutir a reforma trabalhista.
O texto entregue por Berzoini altera quatro artigos da Constituição. Entre outras mudanças, acaba com a unicidade sindical, o poder normativo da Justiça Trabalhista e o dissídio coletivo e institui a representação dos trabalhadores nos locais de trabalho.
Os críticos alegam que a proposta do governo dá superpoderes às centrais sindicais, estimula o plurissindicalismo e fortalece a participação dos empregadores nas negociações coletivas, em detrimento dos sindicatos de base. O texto permite, por exemplo, que as entidades sindicais de cúpula (centrais ou confederações) negociem diretamente com os empregadores, mesmo sem a participação do sindicato da categoria.
“É uma concepção liberal na relação entre trabalhador e patrão. Hoje toda nossa concepção jurídica é de que o trabalhador é hipossuficiente em relação ao patrão, ou seja, é a parte mais débil entre os dois. A estrutura legal existe para dar uma proteção ao trabalhador. Isso tudo será superado”, critica Sérgio Miranda.
A divisão na base governista quanto ao assunto apenas reproduz as divergências do movimento sindical. A proposta do governo foi elaborada a partir de discussões entre representantes das centrais sindicais, dos sindicatos patronais e do governo, que integraram o Fórum Nacional do Trabalho (FNT). A reforma será feita em duas etapas: por emenda constitucional e projeto de lei, que só será enviado após a mudança na Constituição.
Descontentes com os rumos da proposta, representantes das confederações deixaram o FNT e criaram o Fórum Sindical dos Trabalhadores (FST), responsável pela proposta apresentada por Miranda. Em sua apresentação, o texto recebeu apoio de 199 deputados e senadores. Entre os defensores da proposta, estão o presidente nacional do PMDB, deputado Michel Temer (SP) e os senadores Ramez Tebet (PMDB-MS) e Paulo Paim (PT-RS).
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Congresso em Foco – Em que a reforma sindical que o senhor propõe difere da proposta que será apresentada pelo governo?
Sérgio Miranda – O aspecto essencial é que a proposta que apresentei é um projeto de lei que regulamenta o artigo 8º da Constituição, garantindo a unicidade e o financiamento sindical. O governo quer mudar o artigo 8º. Nós defendemos uma atualização da estrutura sindical a partir do exame objetivo da realidade que se impôs após a Constituição de 1988, que garantiu a liberdade sindical. Há várias contradições no movimento sindical, principalmente no que diz respeito à representatividade. Temos de definir um estatuto democrático para as entidades, fixando claramente as condições de disputa sindical, os mandatos eletivos, a participação do associado na vida do sindicato e a incorporação das centrais sindicais.
A incorporação das centrais sindicais ao sistema, prevista em seu projeto, é semelhante à pretendida pelo governo?
Hoje na estrutura sindical não existe espaço para as centrais. Elas devem ser incorporadas, mas não como o núcleo estruturante do movimento sindical, como pensa o governo. Defendemos que o sindicato de base seja a referência para o movimento sindical. Essa é a diferença básica entre as duas propostas. Queremos regulamentar a unicidade sindical, enquanto o governo procura acabar com ela e impor um plurissindicalismo. A concepção de movimento sindical do governo concentra poder nas centrais sindicais, que terão poder de realizar acordos – inclusive com cláusulas que não podem ser alteradas pelas assembléias de base nem pelos sindicatos – e difundir sindicatos com representação derivada, que nada mais é do que o sindicato biônico na sua essência.
Mas o governo alega que sem acabar com a unicidade e o imposto sindical não é possível estabelecer um novo modelo de sindicalismo no Brasil. Essa avaliação não é correta?
Eles querem fazer um novo modelo de sindicato baseado no plurissindicalismo e na organização dos sindicatos a partir da estruturação de várias sindicais. Objetivamente no Brasil haverá duas centrais: a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a Força Sindical. Essa estrutura verticalizada, em que o poder parte das cúpulas das centrais e perpassa até o sindicato de base, é uma concepção de outro modelo, com o qual não concordamos.
Na prática, quais os riscos desse novo modelo sindical para o trabalhador?
O principal é o enfraquecimento da luta sindical na base, com a excessiva concentração de poder nas centrais. Defendemos que possa haver um pluralismo sindical nos níveis intermediários, mas mantendo a unicidade na base. Pode haver várias federações e centrais, mas a referência do movimento sindical para nós é o sindicato na base. O novo modelo, ao criar várias entidades na base, acaba com a possibilidade de o sindicato representar toda a categoria. Ele representará apenas o seu associado. Com o plurissindicalismo e as restrições que existem hoje para o movimento sindical, principalmente dentro das fábricas, quem vai definir o sindicato que terá mais força será o patrão. Não existe no Brasil uma cultura e uma legislação que protejam a atividade sindical e os direitos dos trabalhadores.
“Com o plurissindicalismo e as restrições que existem hoje para o movimento sindical, principalmente dentro das fábricas, quem vai definir o sindicato que terá mais força será o patrão”
O que poderia ser implantado nesse sentido, por exemplo?
Por exemplo, a garantia contra demissão imotivada, prevista na Convenção 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que o Brasil chegou a aceitar e posteriormente revogou. Isso seria uma garantia para que o trabalhador pudesse, de forma livre, optar pelo seu sindicato. Não existe mais. Com a proposta do governo, vamos ter claramente o patronato definindo qual é o sindicato de sua preferência e perseguindo os demais.
Por esse raciocínio, ao contrário do que o governo alega, o novo modelo proposto diminui o poder de negociação do trabalhador?
A concepção do governo está centrada em três aspectos: a concentração de poder nas centrais, o plurissindicalismo e a transformação da negociação como principal instrumento na relação entre trabalho e capital. Pela proposta do governo, as centrais e as demais entidades intermediárias terão poder de negociar, independentemente dos sindicatos. Hoje não pode haver negociação sem a participação do sindicato de base. No máximo, ele pode pedir à federação ou à confederação que participe do processo. É uma concepção de movimento sindical organizado quase por tendência política, semelhante ao que existe na Europa. Na França e na Itália os sindicatos são organizados por correntes políticas. Há o sindicato do Partido Comunista, o do Partido Socialista e o da Democracia Cristã, por exemplo. Como conseqüência dessa proposta, aparece o plurissindicalismo, que enfraquece a luta dos trabalhadores na base. Apesar de a lei atual falar de coibição de práticas anti-sindicais, a ditadura ainda vigora nas empresas. Não existe democracia dentro de empresa. Mesmo na organização por local de trabalho (prevista na proposta do governo) a regulamentação é bastante genérica. Funcionará muito mais como comissão de conciliação prévia do que como representação sindical dentro da empresa.
“A concepção do governo está centrada em três aspectos: a concentração de poder nas centrais, o plurissindicalismo e a transformação da negociação como principal instrumento na relação entre trabalho e capital”
E o terceiro aspecto?
O terceiro aspecto que dá o tom ideológico a toda essa estrutura é a subestimação do poder regulador do Estado e a transformação da negociação como principal instrumento na relação capital e trabalho. Tudo vai se voltar para a negociação. Com o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, ela vai se limitar a verificar o cumprimento dos acordos coletivos e individuais. Ela deixará de ser palco da realização de acordos, a instância para a qual o sindicato recorria para julgamento de dissídio e apresentação de acordo. Isso, aliás, já não existe. Com a reforma, o governo aprofunda essa retirada de poder da Justiça do Trabalho. É uma concepção liberal na relação entre trabalhador e patrão. Hoje toda nossa concepção jurídica é de que o trabalhador é hipossuficiente em relação ao patrão, ou seja, é a parte mais débil entre os dois. A estrutura legal existe para dar uma proteção ao trabalhador. Isso tudo será superado. A relação entre trabalhador e patrão será transformada na de dois entes, com iguais condições. É como um contrato entre uma empresa e o seu fornecedor. A Justiça não se mete nisso. Uma empresa, por exemplo, não pode entrar na Justiça porque o fornecedor quer aumentar o preço. Essa relação entre as empresas vai ser estendida também para o capital e o trabalho. Será tudo na base da negociação.
“Hoje toda nossa concepção jurídica é de que o trabalhador é hipossuficiente em relação ao patrão, ou seja, é a parte mais débil entre os dois. A estrutura legal existe para dar uma proteção ao trabalhador. Isso tudo será superado”
Nessa perspectiva, é possível dizer que a reforma sindical já embute parte da reforma trabalhista?
Claro. A reforma sindical já é a reforma trabalhista. Ao considerar que os acordos têm o mesmo poder do sistema legal, essa proposta de emenda constitucional diz claramente que o negociado se sobrepõe ao legislado. O que se pretende é fazer a reforma trabalhista já na sindical. O resto será detalhe. O poder normativo da Justiça do Trabalho diminui, mas aumenta a sua capacidade de intervenção nos conflitos, na questão das greves nas atividades essenciais, por exemplo. A Justiça aumenta seu poder de um lado, na solução de conflitos, e diminui na garantia dos direitos.
“A reforma sindical já é a reforma trabalhista. Ao considerar que os acordos têm o mesmo poder do sistema legal, essa proposta de emenda constitucional diz claramente que o negociado se sobrepõe ao legislado”
A proposta encampada pelo Partido dos Trabalhadores vai contra a garantia dos direitos trabalhistas?
Nessa questão, o governo age em função da agenda liberal. O empresário brasileiro suporta uma carga tributária excessiva, um sistema de juros cruel. A compensação disso virá pela quebra da garantia dos direitos trabalhistas. Há uma visão de que o custo da mão-de-obra no Brasil terá de ser assemelhado ao da Ásia, sem levar em conta que lá existem outras vantagens para os trabalhadores, tanto na educação quanto na saúde. Procura-se assim descontar o peso da política tributária e monetária nas costas dos trabalhadores. É lamentável que essa iniciativa venha por mão de um partido que se intitula Partido dos Trabalhadores.
“O empresário brasileiro suporta uma carga tributária excessiva, um sistema de juros cruel. A compensação disso virá pela quebra da garantia dos direitos trabalhistas”
O governo não vai enfrentar resistência da oposição ao dar mais poderes para as centrais sindicais, já que a CUT é praticamente um braço sindical do PT?
Esse é um dos pontos, mas essa visão de plurissindicalismo é compartilhada pelos partidos da direita, como o PFL e o PSDB. Nessas reformas neoliberais, como a autonomia do Banco Central e as reformas da Previdência, sindical e trabalhista, o governo conta com o apoio da oposição. A resistência maior virá de parte do PT, dos partidos de esquerda e dos parlamentares que têm algum contato com o movimento sindical atual, que será todo varrido.
Mas em que medida as mudanças que o seu projeto propõe podem reformar a estrutura sindical brasileira?
Ela atinge as várias contradições e debilidades atuais do sistema sindical. Depois da Constituição de 1988 vários sindicatos adotaram posições internas claramente antidemocráticas. Aumentaram excessivamente o mandato da diretoria e impediram que novos trabalhadores se sindicalizassem para controlar o colégio eleitoral das disputas sindicais, por exemplo. Não existem regras democráticas para a disputa eleitoral dentro dos sindicatos. Procuramos combater esses malefícios que surgiram com a liberdade sindical. Nesse sentido, o objetivo de fixar um estatuto democrático é uma reforma efetiva. Observe que no caso do governo ele institui o chamado sindicato com representação derivada. Se a central tiver representatividade assegurada, poderá criar, em qualquer base, um sindicato sem a necessidade de número mínimo de filiados e de um estatuto democrático. Será um sindicato biônico, apenas para concorrer com os outros. Os sindicatos que terão estatuto democrático, segundo eles, serão apenas os que tiverem representação exclusiva, ou seja, só os atuais. Essa exigência de estatuto democrático para todos, que está incluída no meu projeto, é uma forma avançada de coibir os abusos que existem no movimento sindical e garantir maior representatividade para os sindicatos.
“Depois da Constituição de 1988 vários sindicatos adotaram posições internas claramente antidemocráticas”
A proposta a ser enviada prevê também a participação dos empregadores e do governo no Conselho Nacional de Relações do Trabalho (CNRT), responsável por avaliar programas e ações governamentais nas questões relativas às relações de trabalho. Essa medida representa um avanço nas negociações?
Isso é um retrocesso. Vamos ter patrões definindo questões envolvendo o sindicalismo dos trabalhadores. Isso havia anteriormente, mas já não existe mais. Mostra também uma visão liberal da proposta, que reduz a relação entre trabalhador e patrão aos dois, sem a interferência do Estado. Isso leva a absurdos: de um lado, liberaliza; de outro, concentra poder. O CNRT é uma forma de controle de patrão dentro do movimento sindical dos trabalhadores.
De que forma a sua proposta contempla o sindicalismo patronal?
Não estudei a questão do sindicato patronal. O que me chama atenção é que a proposta do governo mantém o financiamento da estrutura de associativismo dos patrões com recursos parafiscais (contribuições sindicais destinadas ao financiamento da seguridade social e do chamado Sistema S, composto por Sesc, Senac e Senai, entre outros), mas para os trabalhadores, não.
O senhor acredita na aprovação da sua proposta, já que projetos do governo geralmente têm preponderância sobre iniciativas dos parlamentares no Congresso?
Desta vez é diferente. O governo vai apresentar primeiro uma emenda constitucional, que exige votação qualificada, ou seja, aprovação de três quintos dos deputados. A minha proposta não requer emenda, apenas maioria simples.
Fonte:www. congressoemfoco.com.br
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