Os criminosos brasileiros estão ficando cada vez mais sofisticados. Têm bom nível de escolaridade, são bem inseridos na sociedade e planejam operações cada vez mais milionárias, como o roubo do BC (Banco Central) em Fortaleza e o transporte de duas toneladas de cocaína dentro de bucho bovino, rumo à Europa.
“Assim como já acontece em países desenvolvidos, o crime no Brasil está dando um salto de qualidade”, afirma o italiano Giovanni Quaglia, 54, representante do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime no Brasil.
Ele acha preocupante esse quadro, mas vê nele uma boa oportunidade para combater o tráfico e o consumo de drogas no país.
Sua sugestão é caçar os criminosos mais sofisticados, confiscar seus bens e investir esses recursos no tratamento de dependentes químicos, como o modelo adotado na Europa. Isso reduziria a demanda por entorpecentes, e, portanto, o poder dos traficantes.
Quaglia já morou em países com intensa produção de cocaína e de ópio, como a Bolívia e o Afeganistão. Quando esteve à frente do escritório do Paquistão (responsável também pelo Irã e pelo Afeganistão) em 1996 e 1997, foi encarregado pela ONU (Organização das Nações Unidas) de negociar com o regime Taleban afegão estratégias para reduzir o cultivo da papoula, de onde se obtém ópio. Leia abaixo a entrevista que ele concedeu à Folha:
Folha – A operação Caravelas, da PF (Polícia Federal), apreendeu duas toneladas de cocaína em bucho bovino e trouxe à tona um tipo de traficante pouco visto na mídia brasileira. O que há de diferente nesse tipo de tráfico?
Giovanni Quaglia – A pessoa que se envolve nesse tipo de crime tem outro perfil em comparação com o do traficante de favela.
É gente com nível superior, bem inserida na sociedade, que usa empresas legais de fachada, ganhando dinheiro de forma ilegal, mas investindo parte desses recursos em empresas legais para disfarçar sua origem.
Estamos falando então de um tipo de organização criminosa muito mais sofisticada e próxima do que já existe em outras partes do mundo. É um crime feito por pessoas de elite e de classe média alta, que se encarregam de enviar a droga da América do Sul para a Europa e para os Estados Unidos.
Assim como já acontece em países desenvolvidos, o crime no Brasil está dando um salto de qualidade. Recentemente, vimos também o caso do roubo do Banco Central em Fortaleza. É um tipo de crime que exige muita organização e planejamento. No caso de Fortaleza, o investimento inicial dos criminosos foi de mais de R$ 1 milhão. Isso não tem nada a ver com o crime de varejo que encontramos em favelas. É um outro tipo de estrutura e de organização. São pessoas com muito mais capacidade de se infiltrar nas esferas econômicas e do poder.
Folha – Mas não é um tipo de crime que sempre existiu no Brasil, mas que nunca foi descoberto?
Quaglia – Não sei se sempre existiu, mas seguramente começa a ficar mais visível até por causa de operações como essas da Polícia Federal. É esse tipo de crime, mais organizado e bem estruturado, que é mais comum mundo afora. O crime que usa a violência em favelas é uma exceção. Você não encontra isso no contexto europeu, talvez apenas em alguns subúrbios dos Estados Unidos.
Folha – No caso brasileiro, no entanto, essa rede mais sofisticada não está diretamente ligada aos traficantes de favelas?
Quaglia – Eu diria, na verdade, que são duas redes paralelas. Como mostrou essa última operação da PF, a cocaína apreendida era de ótima qualidade, 100% pura, direcionada ao mercado europeu, onde ela ganha alto valor agregado. O objetivo não era abastecer o mercado local brasileiro. Era uma operação muito bem organizada no atacado. É um crime organizado com vinculação internacional.
Nas favelas, essa droga de primeira qualidade é muito mais rara. O que você encontra com mais freqüência é uma cocaína menos pura ou que é misturada para fazer crack para viciar rapidamente os jovens mais pobres. É outra linha de negócio e as pessoas que trabalham nele são muito menos sofisticadas e mais violentas, sobretudo porque precisam defender um território por meio das armas para garantir a venda. São duas estruturas diferentes.
Folha – Dá para dimensionar, em termos de volumes negociados, qual dessas duas estruturas movimenta mais dinheiro?
Quaglia – Eu poderia estimar, sem estar muito longe da realidade, que de 75% a 80% do dinheiro movimentado pelo crime organizado é proveniente desse crime mais sofisticado.
A imprensa, no entanto, coloca quase toda a sua ênfase nesse crime de varejo, das favelas, de comercialização de drogas dentro das grandes cidades. Mas acho que, no futuro, vamos ouvir cada vez mais falar dessas pessoas com nível superior, bem inseridas na sociedade e que usam empresas legais de fachada para lavar dinheiro do tráfico de drogas, de armas ou da pirataria. É preciso mudar esse olhar da mídia, para que ela focalize também o crime sofisticado. Nesse crime, a violência é péssimo negócio, porque chama atenção.
Não estou com isso minimizando a importância desse outro tipo de tráfico. Todos sabemos que no Brasil a violência entre gangues de traficantes produz muitos homicídios e mortes por bala perdida. Em vários países, no entanto, existe uma nova cultura dos órgãos de repressão, que se preocupam mais em ir atrás de grandes traficantes e confiscar seu dinheiro e suas propriedades para financiar a recuperação de dependentes químicos e, dessa forma, diminuir a demanda.
Esse crime de varejo sempre vai existir enquanto houver demanda. É por isso que trabalhar para reduzi-la é a melhor forma de diminuir o poder desse tráfico.
Folha – O Brasil tem feito isso?
Quaglia – Acho que no Brasil há uma falta de definição da melhor forma de tratar os dependentes. Hoje, o que acontece é que eles acabam sendo tratados por organizações da sociedade civil. Há pouco investimento e compromisso das políticas públicas no tratamento da dependência química. Esse é o grande desafio que eu vejo para o Brasil. É preciso construir serviços de saúde pública que atuem nesse sentido. Foi o que fizeram os países europeus.
Folha – Mas trouxe algum resultado a esses países? Essa linha, por exemplo, não é a mesma seguida pelos Estados Unidos?
Quaglia – Nos Estados Unidos, a principal política foi a de prender o traficante e o usuário. Foi por isso que o número de presos lá dobrou nos últimos dez anos desde a introdução da política de tolerância zero. Os EUA preferiram essa opção porque a sociedade é diferente. A Europa decidiu investir nos serviços de tratamento de saúde pública. É uma política mais em linha com a cultura humanista da ONU.
Posso dizer que, seguramente, a política européia gerou menos violência na sociedade do que a norte-americana ou a de outros países que usaram a política de encarceramento. O que acontece é que o preso sai da cadeia pior do que entrou. É por isso que preferimos que o usuário seja tratado como um problema de saúde pública, enquanto o traficante é um problema de polícia.
Folha – Sempre que ações desse tráfico violento chocam o país, parte da sociedade costuma comparar a situação brasileira à da Colômbia ou à da Bolívia. O senhor, que já foi chefe do escritório da Bolívia e conhece bem a Colômbia, concorda com essa comparação?
Quaglia – É difícil comparar a situação do Brasil com a da Colômbia e a da Bolívia. Morei quatro anos na Bolívia e visitei várias vezes a Colômbia. São dois países de intensa produção de coca e de transformação da folha em cocaína. As organizações criminosas lá estão diretamente vinculadas à transformação da folha de coca em cocaína, para depois comercializar o produto.
A situação do Brasil é diferente. O que está acontecendo aqui é que está havendo um incremento do consumo. Antes, este era um país praticamente apenas de trânsito da droga, com baixo consumo. O aumento do consumo foi intensificando as brigas entre grupos de traficantes por causa da disputa de mercado. Para manter ou ganhar mais pontos, os traficantes passaram a comprar mais armas, que foram ficando cada vez mais sofisticadas. Foi sem dúvida uma evolução muito negativa, mas eu diria que o Brasil caminha mais para o perfil de consumo dos Estados Unidos e da Europa do que o de produção, como na Colômbia e na Bolívia.
Folha – Só que, assim como acontece na Bolívia e na Colômbia, podemos dizer também que no Brasil há territórios em que o poder público perdeu sua capacidade de se impor. Nesse sentido, não estamos próximos desses países?
Quaglia – Em parte sim, porque se trata de uma questão de falta de controle territorial. Aqui, isso acontece muito mais nas periferias das grandes cidades ou em favelas. No caso de países produtores, como Bolívia, Colômbia ou Afeganistão, é um problema muito maior em áreas rurais, mas, no fundo, trata-se também da dificuldade do governo de impor a lei. Em todos esses países, faltam alternativas econômicas e sociais, mas há também o interesse dos traficantes em manter o negócio.
Folha – Na Europa e na Ásia, além do consumo de drogas tradicionais, como a maconha e a cocaína, há a preocupação também com o aumento das drogas sintéticas? O Brasil deveria se preocupar também com isso?
Quaglia – Graças a Deus, estamos longe dos níveis verificados na Europa, nos Estados Unidos e em alguns países asiáticos. O que nos preocupa no caso brasileiro é a possibilidade de essas drogas sintéticas passarem a ser produzidas no Brasil, o que diminuiria seus custos e poderia provocar um aumento do consumo. Enquanto a produção for concentrada na Europa, a massificação ficará mais difícil no Brasil por a droga estar acessível apenas a um percentual limitado da população de maior poder aquisitivo.
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