Um estudo sobre controle externo da polícia no Brasil Julita Lemgruber, Leonarda Musumeci e Ignacio Cano Editora Record, 2003 Até mesmo os policiais do próprio país não gostam da Polícia do Brasil. Investigadores, escrivães inspetores, a “tiragem” do policiamento civil, e os soldados, cabos e sargentos, os praças da polícia militar – todos dizem que estão sendo injustiçados e perseguidos pelos superiores hierárquicos. Apontam como vilões a minoria privilegiada das duas entidades: delegados e oficiais da PM que vivem isolados nos gabinetes, distantes dos riscos de morte de quem faz o patrulhamento nas ruas mais violentas do mundo. A revolta silenciosa da base das duas grandes corporações de segurança pública brasileiras é apenas uma das descobertas deste livro, embora não seja uma obra de denúncia. Quem vigia os vigias? é o primeiro resultado concreto de um projeto de pesquisa que visa aprimorar o controle externo da polícia, hoje limitado às ações ainda muito frágeis das Corregedorias e das Ouvidorias de Polícia. A iniciativa da pesquisa, que vasculhou os arquivos das duas entidades em cinco estados da federação, é dos sociólogos Julita Lemgruber, Leonarda Musumeci e Ignacio Cano, alguns dos raros intelectuais do país que têm levado a inteligência do meio acadêmico para ações efetivas nas áreas mais atingidas pela epidemia de violência. Os pesquisadores ouviram os corregedores, os ouvidores, os funcionários das Ouvidorias e as pessoas mais simples do povo, que tiveram seus direitos violados pela polícia. O resultado mostra as dificuldades das duas entidades em fiscalizar e punir os maus policiais. E forma um painel com informações inéditas e qualificadas sobre os crimes mais graves praticados pelos “homens da lei” contra a sociedade brasileira: a corrupção, o extermínio e o abuso de poder. A pesquisa confirma, entre tantos desvios de função, que os policiais militares de São Paulo são o alvo das maiores queixas de uso excessivo da força contra negros e pobres. E que a polícia do Rio, sempre notória por envolvimento com corrupção, nos últimos anos do século XX passou a copiar a de São Paulo na prática de extermínio de suspeitos. Nos primeiros cinco meses de 2003 os policiais fluminenses chegaram a bater um recorde nacional: mataram uma pessoa a cada oito horas, principalmente nos morros e na periferia da capital. O livro aponta, como origem histórica desse poder paralelo e sem controle, a influência autoritária herdada da ditadura militar. Mostra também que o regime de exceção atrasou em décadas a profissionalização desses serviços, por não acompanhar a revolução tecnológica ocorrida na área de segurança em outros países do mundo. Mas o arbítrio policial tem raízes mais antigas e profundas. Depois do fim da ditadura, a política de combate aos criminosos comuns se manteve como era antes. E, como lembra Julita Lemgruber, nunca foi a de manter a ordem pública, mas sim a de garantir o cumprimento das regras que geraram as desigualdades de classe, principal característica da sociedade brasileira. A tortura nos porões das delegacias, a matança de pobres nas ruas, o racismo, a corrupção e o abuso de autoridade não passam, na visão dos autores, de instrumentos de sustentação do poder paralelo concebido nos tempos coloniais. Outra força de sustentação é o despotismo de parcela significativa da sociedade brasileira, de ontem e de hoje, que rejeita radicalmente a noção de direitos civis universais. O livro revela a dimensão da hipocrisia que envolve Polícia e Justiça e anula a proteção legal às vítimas da violência do Estado. Como interpretar, por exemplo, a omissão dos promotores de Justiça na aplicação da lei dos crimes de tortura? O Conselho Nacional de Procuradores de Justiça registrou em cinco anos 524 queixas, e os promotores, tidos como advogados do povo, transformaram a maioria desses casos em inquéritos de lesões corporais e não de tortura. Dos 524 acusados, apenas 15 foram a julgamento e somente nove receberam sentença de condenação. Até maio de 2003, nenhum estava na cadeia. Quem vigia os vigias? é leitura obrigatória para quem acredita que o controle da polícia é essencial para a construção de uma democracia sólida. Indispensável para combater a tese conservadora de que a lei atrapalha a eficácia da repressão ao crime. E para contrapor os argumentos dos pessimistas bem-intencionados, aqueles que não acreditam na busca de solução sem antes limpar o caminho com uma profunda revolução social e cultural do país. É uma lição de otimismo. Mais informações sobre o livro clique aqui
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