Rio: um dia de cão
Ricardo Miranda
Da equipe do Correio
Ricardo Moraes/AP |
Ocupação: homens das Polícias Militar, Civil e da Força Nacional de segurança pública começaram o cerco pela manhã |
Ricardo Moraes/AP |
Choro na favela: diante dos corpos estendidos no chão, mulheres se desesperam com a força da operação deflagrada |
A ação sangrenta ocorre a apenas 16 dias do início dos Jogos Pan-Americanos. Desde as primeiras horas da manhã, e durante todo o dia, intensos tiroteios colocaram a comunidade que vive no Alemão, mais uma vez, no meio do fogo cruzado. As cenas eram de guerra civil: mulheres e crianças correndo desesperadas e jovens mortos e feridos dos dois lados da linha invisível que separa policiais e bandidos. Essa foi a maior tragédia da guerra que já soma 57 dias nas favelas do Complexo do Alemão, que se tornaram um laboratório da violenta política de segurança adotada pelo governador Sérgio Cabral (PMDB). Ele desistiu de esperar o Exército e partiu para o confronto direto com os criminosos encastelados em morros e comunidades pobres da cidade.
Embora os números não sejam oficiais, a polícia não descarta as estimativas que mostram o resultado direto da ocupação: 48 mortos e 85 feridos, desde o início da ação policial. “Vamos excluir esses núcleos de violência”, disse Beltrame. Ele não teve meias palavras para definir o que está acontecendo na “cidade partida” — codinome menos turístico da cidade maravilhosa. “Estamos ampliando a ocupação de áreas dominadas por comandos criminosos”, disse. Lamentando a morte de inocentes, ele garantiu que a incursão foi “cirúrgica”, mas admitiu que “casualidades” são inevitáveis.
Sem precedentes
A ação policial deflagrada ontem começou por volta 9h e envolveu um número recorde de policiais: 1.350 homens, entre civis, militares e soldados da Força Nacional. Nas principais entradas da favela, uma impressionante fila indiana de carros de delegacias especializadas indicava o tamanho da operação. Foram usados dois helicópteros e quatro blindados da PM, chamados de “caveirão”. O barulho do intenso tiroteio, as balas traçantes cruzando os céus e a correria dos moradores remetiam a outros cenários de guerra, como Bagdá ou Beirute. Pelo menos oito escolas fecharam as portas, deixando 5.800 crianças ficaram sem aulas.
Nas estreitas vielas das favelas, corpos jaziam enfileirados. Muitos inocentes ficaram feridos, como a menina Larissa de Andrade de Silva, 12 anos, baleada quando voltava do colégio, na Favela da Grota, dentro do Alemão. Na Escola Heitor Lira, outra jovem, Karen Cristina Baptista Borges, 20 anos, foi derrubada por estilhaços de bala, que feriram seu tornozelo esquerdo. Ali perto, na comunidade conhecida como Fazendinha, o policial Domingos Silva, 27 anos, foi atingido na barriga e engrossou a relação de feridos por balas atendidos durante todo o dia no hospital mais próximo, o Getúlio Vargas.
Também foram feridos Arlete dos Santos, 48 anos; Ivo da Silva, 17; Carlos Henrique Matias Vitoriano, 13; Edvan Mariano de Souza, 32; e Valnice Alves da Silva, 27. Esta última vítima contou que teria sido espancada por traficantes por ter atrasado a entrega do almoço aos bandidos. Ela trabalha em uma lanchonete, na favela.
O remédio para o Rio é amargo. Resultados podem chocar, mas a situação é muito ruim |
José Maria Beltrame, Secretário de Segurança Pública do estado do Rio
O número
19
pessoas morreram durante a
operação policial feita no conjunto
de favelas do Complexo do Alemão
O número
5,8 mil
alunos das escolas públicas locaizadas na região do Alemão ficaram ontem sem aulas
O número
1.350
homens da Força Nacional, polícias Militar e Civil participaram da ação, cumprindo mandados de prisão
O pacto de não-agressão O secretário José Mariano Beltrame fez ontem uma grave acusação, embutida em uma declaração forte: o Estado, assegurou, rompeu com o “pacto de não agressão” que existia com o poder paralelo no Rio. A frase resgata a velha suspeita de que, no passado recente, o mesmo Estado, para preservar uma paz aparente, firmou um pacto subterrâneo com o crime organizado. A sangrenta operação no Alemão, argumentou o secretário, permitiu ao governo voltar a ter acesso a áreas onde policiais e cidadãos de bem já não entravam. “Esses eram lugares onde a polícia há décadas não chegava, já que a reação dos criminosos sempre foi bem forte”, explicou. O secretário disse que o “cerco vai aumentar”, mas não quis relacionar o arrocho ao tráfico no Alemão à proximidade do Pan, que começa em 13 de julho. O estádio João Havelange fica a cerca de 10 quilômetros do Complexo do Alemão e será inaugurado no sábado com um jogo entre Fluminense e Botafogo. A operação mostrou coordenação das forças policiais do Rio, reunindo agentes de várias delegacias, como Core, e batalhões, como o Bope (Batalhão de Operações Especiais) da PM, além de homens da Força Nacional de Segurança Pública. A operação teve como objetivo, segundo Beltrame, prender uma quadrilha de traficantes que comanda o tráfico no Complexo, e que teria sido detectada pelo serviço de inteligência. A operação teria sido planejada por dois meses e entre os locais “recuperados” pelo estado estão Areal, Chuveirinho e Matinha. Foram apreendidos 40kg de cocaína, 30kg de maconha, quatro fuzis .30 — armas consideradas anti-aéreas — e outras armas de médio e pequeno porte. Mais uma vez, o tráfico usou táticas de guerrilha para responder à entrada da polícia no território. Jogou óleo nas vielas para torná-las escorregadias e bloqueou as entradas com barricadas — trilhos de trem fincados no asfalto, botijões de gás e até carros roubados. Além disso, usou os moradores como escudos humanos. Os bandidos atiravam quase sempre da parte mais alta do morro. O secretário Beltrame reconheceu que, mesmo após quase dois meses de cerco, o tráfico ainda reage ferozmente à polícia. Ninguém duvida que eles tenham muitas armas, mas ninguém explica como eles podem continuar recarregando essas armas — ou há um paiol gigante no morro ou, de alguma forma, a munição pesada continua entrando. (RM) |
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