Tráfico, extermínio e medo – Força nacional em ação
Tropa de elite especializada no combate ao narcotráfico será destacada para atuar no Entorno, com pelo menos 374 homens. Governos do DF e Goiás decidirão na quinta-feira como os policiais irão agir na região
Guilherme Goulart
Da equipe do Correio
O governo federal usará a Força Nacional de Segurança para combater a violência nas 20 cidades ao redor de Brasília. Reunião realizada ontem no Ministério da Justiça classificou o Entorno do Distrito Federal como “prioridade” e decretou medidas emergenciais (veja quadro) para iniciar as primeiras ações de ataque à criminalidade. Os governos do DF e de Goiás receberão de imediato R$ 10 milhões. Além do reforço de homens, armas e veículos, mais recursos serão liberados ao longo do ano.
A intervenção do Palácio do Planalto ocorreu após série de reportagens publicada pelo Correio desde a última terça-feira. Estatísticas levantadas no Instituto Médico Legal e na Delegacia Regional de Luziânia revelaram que 41 adolescentes acabaram assassinados na região por causa do tráfico de drogas — o número chega a 150 mortos se contabilizados os homicídios praticados contra jovens de 19 a 26 anos. Os crimes têm relação com dívidas contraídas no mundo do tráfico. Para eles, há duas chances de sobrevivência: viram pistoleiros ou furtam para pagar o que devem.
A denúncia fez com que o ministro da Justiça, Tarso Genro, comparasse os municípios vizinhos ao DF com o Rio de Janeiro. “Assim como o Rio, o Entorno será prioritário no combate à violência. Nós nos concentraremos em um trabalho a curto prazo, começando entre 15 e 20 dias”, afirmou Genro, logo após encontro com o récem-emprossado secretário Nacional de Segurança Pública, Antônio Carlos Biscaia, o governador do DF, José Roberto Arruda (DEM), o de Goiás, Alcides Rodrigues (PP), e vários representantes da segurança pública das duas unidades da Federação.
Durante a reunião, o ministro teve acesso a números e a planos de combate à violência. Saiu dela com discurso incisivo. “À medida que os governadores solicitarem, vamos disponibilizar efetivos da Força Nacional. Também haverá integração com a Polícia Federal. A situação é emergencial”, avaliou. Genro ainda citou a participação do Entorno na distribuição de recursos do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci). O PAC da Segurança prevê R$ 3,8 bilhões para as 11 regiões metropolitanas mais violentas do país.
Reforço
O governador Arruda acredita que as cidades limítrofes ao DF precisam do reforço de pelo menos 500 homens para iniciar o cerco ao tráfico de drogas. Por enquanto, estão garantidos quase 400 policiais da tropa de elite especializada no combate ao narcotráfico. São 300 do DF e outros 74 de Goiás que até o fim de agosto integravam a Força Nacional de Segurança destacada para os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro. “Esses homens não voltarão para as suas funções de origem. E serão diretamente disponibilizados para a Secretaria Nacional de Segurança e o Entorno”, afirmou.
O governador goiano anunciou três medidas urgentes para a região: reforço de 172 carros de polícia, reformas de presídios e abertura de concurso público para o preenchimento de 621 vagas de delegado, escrivão e agente. Os detalhes técnicos e operacionais das ações serão definidos em reunião marcada para quinta-feira entre representantes das secretarias de Segurança Pública do DF e de Goiás. O comandante da Polícia Militar do DF, coronel Antônio José Serra, adiantou que dará prioridade aos municípios goianos de Águas Lindas e Cidade Ocidental.
As medidas anunciadas |
Dias inteiros sem fazer nada Adolescentes de Cidade Ocidental têm poucas opções de lazer. Um dos lugares disponíveis, o ginásio municipal, cobra taxa para os que quiserem jogar lá. Mães estão receosas em deixar os filhos saírem de casa Érica Montenegro Da equipe do Correio
Ao contrário dos meninos e meninas do Plano Piloto que cumprem intensa agenda de atividades de lazer e educação ao longo do dia, as quase 16 mil crianças e adolescentes de Cidade Ocidental, a 60km da capital federal, passam manhãs e tardes ou trancadas em casa ou nas ruas esperando o tempo passar. As opções de atividades educativas e de diversão na cidade, em que as adolescentes Raiane Maia Moreira e Natália Oliveira foram assassinadas (veja Entenda o caso), são poucas e o medo obriga as mães a restringir a liberdade dos filhos. Na tarde de ontem, os colégios públicos da cidade estavam fechados porque os alunos desfilaram na última sexta-feira — Dia da Independência. O que se via nas ruas eram grupos de adolescentes em bares ou sentados em rodinhas nos becos da cidade. As crianças menores não estavam presentes nas ruas porque foram impedidas pelas mães. “Os meus eu não deixo na rua. Nenhum minuto”, comentou a vendedora ambulante Maria da Silva, 42 anos, mãe de duas crianças, um menino de 11 anos e uma garota de 8. Maria da Silva trabalhava no Plano Piloto, mas, quando o primeiro filho nasceu, decidiu largar o emprego e buscar algo mais perto de casa. “Já tentaram levar meu filho, com aquela história de dar carona. É por isso que eu não saio de perto”, disse ela. A decisão parece acertada. Logo na saída de casa, Maria e os dois filhos presenciaram um vizinho que, de tão embriagado, não conseguia nem se mover. “O que eu faço? Eu uso de exemplo. Digo a eles que não os quero assim”, lamentou a vendedora. O homem foi socorrido por um transeunte, depois que o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) haviam se recusado a recolhê-lo. “Aqui é assim, temos de confiar na boa vontade uns dos outros”, afirmou a conselheira tutelar Vânia Maria Rodrigues da Silva. Na quadra 19, apontada pelos moradores como uma das mais perigosas, não há calçadas nem asfalto, tampouco parquinhos ou quadras de esporte. “Aqui não tem nada para a gente fazer, só conversar mesmo”, disse um garoto de 11 anos, que a mãe proibiu de sair de casa durante as noites. “Sim, tem droga em cada esquina, é fácil arrumar”, confirmou, para logo ser advertido por um rapaz de 18 anos que pedia que ele se calasse. As mazelas de Cidade Ocidental que transformam os jovens em presas fáceis para o tráfico são comuns às outras cidades do Entorno: poder aquisitivo baixo, pressão para o consumo e falta de oportunidades que não sejam as oferecidas pelo crime. No Colégio Estadual Ocidental — um dos maiores do município —, uma inscrição na parede resume a “filosofia” dos jovens que já caíram na droga e caçoam do que seria uma vida “normal”. O texto creditado a Bob Marley diz: “Para que levar a vida tão a sério, se a vida é uma alucinante aventura da que jamais sairemos vivos?”. Nas outras paredes, como uma espécie de resposta à pergunta, pichações fazem apologia ao uso da maconha e de “cogumelos mágicos”. Nem o futebol, que garante diversão apenas com uma bola e um campo, parece estar acessível a toda população de Cidade Ocidental. Na cidade, há apenas três quadras poliesportivas públicas e um ginásio, o Ayrton Senna. As quadras estão sempre com fila, já o ginásio cobra taxa para ser usado em eventos que não sejam aqueles organizados pela prefeitura. São R$100 mensais para que possa ser usado por oito horas. “É um absurdo. O esporte está em último lugar por aqui”, criticou o professor de educação física Carlos Cézar Inocêncio, 49 anos. Segundo ele, já houve ocasiões da administração cancelar as aulas da escolinha de futebol para que o ginásio fosse usado para formaturas, velórios ou encontros religiosos. A secretária de Educação, Cultura, Desporto e Lazer , Maria Vilain Abrantes, confirmou que há taxas para o uso do ginásio, mas que os grupos que desenvolvem atividades filantrópicas são isentos. Maria Vilain Abrantes não soube detalhar quanto da agenda do ginásio está preenchida com atividades filantrópicas. |
Entenda o caso Em seis meses, 150 assassinatos A morte de duas meninas revelou uma guerra que já matou 150 jovens no Entorno do Distrito Federal. Em 13 de agosto, os corpos das estudantes Natália Oliveira Vieira, 14, e Raiane Maia Moreira, 17, foram encontrados em um terreno de Cidade Ocidental (GO). Filhas de moradores de classe média, elas morreram com tiros na nuca na noite anterior. Ambas namoravam com acusados de envolvimento com o tráfico de drogas. Levantamento do Correio no Instituto Médico Legal e na Delegacia Regional da Polícia Civil de Luziânia (GO) mostrou que nos últimos seis meses, 41 adolescentes de 13 a 18 anos foram assassinados nos municípios goianos de Valparaíso, Novo Gama, Águas Lindas, Luziânia e Cidade Ocidental. Os policiais não solucionaram nenhum dos crimes. Outros 109 jovens, com idade de 19 a 26 anos, morreram na região no mesmo período. De acordo com documentos e depoimentos obtidos pelo jornal, o tráfico de drogas aparece como o principal motivo pela maioria das mortes. O assassinato de adolescentes é assunto de um relatório do serviço de inteligência do Grupo Especial de Repressão a Narcóticos de Goiás (Genarc). De acordo com o documento, Ivo Paes Landim, 13, teria dado início a uma guerra de traficantes que resultou na morte de 15 pessoas este ano na Cidade Ocidental. Ivo teria sido recrutado por João Carlos Santos, apontado como chefe do tráfico no DF e no Entorno, para assassinar Carlos Henrique Silva Pereira. João Carlos e Carlos Henrique disputam o controle do tráfico na região. Até mesmo a polícia tem sofrido ataques pontuais na guerra entre os bandidos. A violência e a impunidade também são explicadas pela falta de ação dos governos estadual, federal e do Distrito Federal na região. Em resposta aos assassinatos de adolescentes na guerra do tráfico no Entorno, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados pediu ao ministro da Justiça, Tarso Genro, a intervenção da Polícia Federal na investigação dos crimes e a participação da Força Nacional de Segurança no combate aos traficantes. O extermínio de jovens no Entorno também será apurado pelo defensor público geral da União, Eduardo Flores Vieira. Ele pretende mover uma ação civil pública contra os governos federal, estaduais (Goiás e DF) e municipais. |
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