Renato Alves e Guilherme Goulart
Da equipe do Correio
José Varella/CB – 8/6/07 |
Basta experimentar o crack uma ou duas vezes para se tornar um viciado: de um grama, traficantes fazem quatro pedras que rendem até R$ 60 |
Assim como São Paulo, nos anos 1980 e 1990, Brasília tem sua cracolândia. O principal ponto de distribuição, venda e consumo do crack na capital fica sobre o estacionamento dos fundos do Setor de Diversões Sul (Conic), de frente para o Setor Hoteleiro Sul. No lugar conhecido como Redondo — devido ao formato da praça —, traficantes e vapores distribuem as pedras. É onde também ocorre o consumo por garotos de rua. Já os filhos da classe média buscam o crack em carros próprios. Os que venderam o veículo para satisfazer o vício recorrem a táxi e vans.
A movimentação do crack ocorre dia e noite. Mesmo com a presença de policiais militares no Redondo. A Polícia Civil sabe do comércio ilegal. Desde uma das primeiras apreensões da droga no DF, em 9 de maio, 23 pessoas foram flagradas com quase 3,5 mil pedras de crack na região da Rodoviária por agentes da 1ª (Asa Sul) e 2ª Delegacia de Polícia (Asa Norte). A maioria no Redondo e perto do Touring, na plataforma superior da Rodoviária.
A Divisão de Inteligência da Polícia Civil analisa há um mês mais de 20 horas de imagens feitas por investigadores nesses pontos. Os vídeos mostram como agem os traficantes e o que fazem os dependentes para conseguir pelo menos uma pedra. Entre as imagens mais deprimentes estão as de jovens com aparência envelhecida, uma das características de quem caiu no crack. Eles entregam celulares, aparelhos de MP3, I-pods, sons de carro, tênis, tudo para ter o entorpecente. E o consomem quase que imediatamente, pois usuário desse tipo de droga fuma a quantidade disponível.
Carro por pedra
Uma das pessoas flagradas constantemente pelos policiais é uma mulher de 28 anos, olhos azuis e cabelos longos e loiros. Há oito meses, foi pega comprando cocaína em seu Peugeot 206 novo. Semana passada estava com 20 pedras de crack, mas a pé. Contou aos policiais que vendeu o carro por R$ 20 mil e gastou tudo na droga. Os agentes descobriram que ela mora só, em uma quitinete da Asa Norte. Paga as contas com a mesada do pai, morador do Lago Norte. Mas o dinheiro não dá para manter o vício. Por isso, virou prostituta de rua.
Fim parecido tiveram dois jovens moradores da QI 9 do Lago Norte, flagrados comprando crack no Redondo há duas semanas. Ambos, de 32 e 21 anos, estavam em um táxi. O mais velho entrou em pânico ao ser abordado pelos policiais com 15 pedras adquiridas a R$ 300. Flagrado na França há cinco anos por tráfico de cocaína, ficou dois anos detido na Europa. Voltou ao Brasil e foi morar com o pai no Lago Sul. Até o começo do ano, tinha uma picape Cherokee nova. O veículo acabou vendido para manter o vício.
O delegado Antônio José Romeiro, chefe da 2ª DP, não dá detalhes das investigações sobre o tráfico. Mas revela preocupação. “Tanto que é a prioridade da nossa Seção de Repressão a Tóxicos e Entorpecentes”, afirmou.
Punição rigorosa
Preocupados com o avanço do crack no DF, os promotores das oito Promotorias de Entorpecentes e Contravenções Penais do Ministério Público local se reuniram com representantes das polícias Civil e Militar há dois meses. Eles discutiram estratégias para conter o tráfico na capital do país. Os promotores decidiram fazer sua parte pedindo punições mais rigorosas às pessoas flagradas vendendo crack.
A Justiça do DF tem respondido com condenações acima de 9 anos, em média, nos casos de flagrantes com as pedras. Quando alguém é sentenciado por tráfico de cocaína, maconha ou merla, pega geralmente seis anos de cadeia. “A lei de tráfico prevê a pena maior para drogas com mais poderes de destruição”, explicou o promotor Newton Cezar Teixeira, da 5ª Promotoria de Entorpecentes e Contravenções Penais.
Para Teixeira, o modo como o crack é vendido é uma das maiores dificuldades no combate a esse tipo de droga. “Ela é dividida em porções muito pequenas. Já peguei um caso em que uma mulher colocava as pedras sob a alça do sutiã e as vendia na Rodoviária, à luz do dia, com o filho bebê no colo”, contou. De um grama, os traficantes fazem quatro pedras. Cada é vendida entre R$ 10 e R$ 15. O preço varia com a aparência do usuário.
depoimento Fátima* Droga leva avó a abandonar neto Guilherme Goulart Da equipe do Correio “Não consigo mais dormir. Moramos em um apartamento e o sobe-e-desce começa de madrugada. Começa a partir da meia-noite e vai até às 6h30. É o período em que ele (o neto) sai para comprar a droga. Acho que compra aos poucos, talvez por instinto de autopreservação. Nnão come direito. Já vendeu tudo para comprar o crack. Os celulares da família ele vendeu. A filmadora também. Era um rapaz que tinha de tudo, tinha roupa de marca, estava na faculdade. Hoje tem um par de chinelos, uma bermuda e uma camisa velha. Está na hora de dar um basta. Cansei. Ele perdeu a namorada, os amigos. Vou-me embora, vou deixá-lo pelo bem das minhas filhas mais novas. Ele está piorando por causa desse maldito crack.” Fátima*, 66 anos, dona-de-casa, moradora da Asa Sul O depoimento de familiares de jovens consumidores de drogas confirmam que o crack alcança a classe média brasiliense. A dona-de-casa Fátima*, 66 anos, mora com os netos em um apartamento confortável na Asa Sul. Mas viu a vida desmoronar depois que o mais velho, de 28 anos, acabou aprisionado pelo vício. Dois anos foram suficientes para que o uso das pedras se tornasse diário. O rapaz largou o curso de administração. Quase não se alimenta. E trocou a noite pelo dia. Assim, ninguém no imóvel dorme na madrugada. O entra-e-sai do rapaz começa após a meia-noite. A movimentação se repete até quase 7h, quando ele adormece. “Entrei no quarto dele algumas vezes e vi latas de cerveja com pequenos buracos. É o que ele usa para o crack”, contou a avó. Ela cria o ex-universitário, que perdeu o pai ainda criança, desde os 3 anos. Antes de experimentar a droga, ele tinha roupas de marca, aparelho de som e celular. Vendeu tudo. Sobraram um chinelo, uma bermuda e uma camiseta. A rotina da família se alterou. Veio o medo e a insegurança. “Os celulares da família ele vendeu. A filmadora também. A gente tem de esconder as coisas em casa”, lamentou Fátima, que o internou há dois anos em Minas Gerais por causa do abuso de merla, outro subproduto da cocaína. A busca do rapaz pelas pedras revela esquema de incentivo ao uso do crack. Segundo a avó, comerciários recebem de tudo em troca de dinheiro. Os jovens consumidores entregam celulares, tênis e até documentos para receber com rapidez certa quantia e comprar a droga. Essa espécie de depositário dá um prazo para que a dívida seja quitada. Caso contrário, vende o bem para repor o rombo. A filmadora de Fátima acabou perdida por R$ 50. Para ela, o sofrimento se tornou insuportável. Trocará Brasília por um estado brasileiro. Quer preservar a saúde e o futuro dos netos mais novos. “Virei o que os especialistas chamam de co-dependente”, comentou. O rapaz ficará com um carro e uma quitinete. A escritura do imóvel permanece com a avó. Operações conjuntas Segundo o diretor-geral da Polícia Civil, Cléber Monteiro, operações conjuntas entre as delegacias das asas Sul e Norte e Polícia Militar têm se direcionado à zona central de Brasília para combater a droga. Rodoviária do Plano Piloto, Setor Comercial Sul e Conic aparecem como as principais áreas de distribuição de crack. Só os arredores do terminal de ônibus concentraram 75% do total da droga apreendida neste ano. “Estamos determinados a fazer um limpeza na área”, resumiu. Monteiro também aposta em duas iniciativas para frear o tráfico no Plano Piloto. Uma delas é a construção da 5ª DP, no Setor Comercial Sul, prevista para ser inaugurada no primeiro semestre de 2008. Também será criada a Coordenação de Repressão a Entorpecente, formada por quatro delegacias especializadas em repressão ao tráfico . “O crack é uma droga que vicia e leva o usuário para o buraco. Onde arrumar dinheiro? Roubando e matando.” |
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