POR GUSTAVO SCHNEIDER
A ruptura com o regime de exceção e a superação dos paradigmas autoritários inspiraram a realização do esforço constituinte, cuja culminância foi o legado de uma nova ordem estatal, instituída pela vigente Constituição da República. Para uma nação historicamente submetida a espasmos ditatoriais e carente da concretização de vários interesses sociais e das mais basilares garantias individuais, representam indubitáveis avanços, conquistados com a promulgação da Norma Fundamental em 1988, a definição extensa e minudente das prerrogativas, competências e atribuições dos diversos órgãos e autoridades políticas responsáveis pelo funcionamento do aparato judiciário e das funções essenciais à Justiça. E é do artigo 129, inciso I, da Constituição, que se extrai a privatividade da iniciativa do parquet na promoção da ação penal pública.
Como se sabe, a ordem jurídica já admitiu a instauração da ação penal mediante portaria da autoridade policial, de acordo com o disposto no artigo 26 do CPP em vigor à evidência que não mais se admite o exercício da pretensão acusatória pelo órgão de polícia judiciária, na nova ordem constitucional. Entretanto, é nosso objetivo provar que a autoridade policial continua a exercer ação penal, por meio da pretensão investigatória. Mais ainda, consideramos confuso e cientificamente impreciso, além de logicamente incorreto, o uso indiscriminado da expressão “fase pré-processual” para designar todas as ações investigatórias realizadas sob o crivo jurisdicional, pelo órgão de polícia judiciária.
A fim de que possamos discorrer sobre a categoria insuficientemente desenvolvida, no plano doutrinário processual penal, da pretensão investigatória, faz-se narredável, contudo, adentrar – embora com brevidade – nos conceitos de jurisdição e ação de direito material. Começaremos nosso breve excurso pelas categorias jurídicas supra referidas buscando um conceito de jurisdição. O que difere a função estatal jurisdicional que a torna própria e distinta das demais manifestações de atividade oficial?
Esse tema ocupou grandes mentes e propiciou riquíssimo debate doutrinário. Parte dessa dialética encontra-se resumida pelo mestre Ovídio Antônio Baptista da Silva (in “Curso de Processo Civil, volume 1, Tomo I: Processo de Conhecimento” – Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 11 e segs). Dos ensinamentos ali contidos, deflui que, para o processualista CHIOVENDA, identificava-se a atividade jurisdicional como substitutiva, já que o magistrado sempre julgaria uma atividade alheia.
A crítica lançada (tais como a formulada por Galeno Lacerda) repudiava a noção substitutiva, a qual não explicaria a natureza jurisdicional das decisões sobre questões eminentemente processuais (a exemplo dos incidentes relativos à competência e suspeição). Em Allorio, a jurisdição se caracteriza, sobretudo, pelo fenômeno da coisa julgada. Calamandrei defendia que o conteúdo propriamente jurisdicional estava adstrito, tão-somente, à declaração contida no dispositivo sentencial. Para Carnelluti, a jurisdição consistia na atividade estatal que buscava a justa composição da lide, entendida esta como o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.
Tais concepções foram desafiadas por críticas inúmeras. Alguns procedimentos, com efeito, de fato, não possuem uma identificação grande com lide (jurisdição voluntária) ou coisa julgada material (processo cautelar) e, no entanto demandam decisões judiciais, de cunho inegavelmente jurisdicional[1]. Segundo aponta mestre Ovídio (SILVA, p. 26), citando o processualista italiano Gian Antonio Micheli:
Depois dessa breve exposição das principais teorias sobre o conceito de jurisdição, cremos que as notas essenciais, capazes de determinar a jurisdicionalidade de um ato ou de uma atividade realizada pelo juiz, devem atender a dois pressupostos básicos: a) o ato jurisdicional é praticado pela autoridade estatal, no caso pelo juiz, que o realiza por dever de função; o juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, pratica essa atividade como finalidade específica de seu agir, ao passo que o administrador deve desenvolver a atividade específica de sua função tendo a lei por limite de sua ação, cujo objetivo não é simplesmente a aplicação da lei ao caso concreto, mas a realização do bem comum, segundo o direito objetivo; b) o outro componente essencial do ato jurisdicional é a condição de terceiro imparcial em que se encontra o juiz em relação ao interesse sobre o qual recai sua atividade. Ao realizar o ato jurisdicional, o juiz mantém-se numa posição de independência e estraneidade relativamente ao interesse que tutela.
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