O Globo
Como resultado, bandidos são julgados por crimes cujas penas são mais leves e conseguem mais rapidamente benefícios
A herança de inquéritos malfeitos, nos quais sequer existem depoimentos de testemunhas ou de parentes das vítimas, é apontada por especialistas e juristas como o principal motivo para que perigosos bandidos, apesar da fama de matadores, não sejam condenados por homicídios. Como resultado, eles são julgados por crimes cujas penas são mais leves e, consequentemente, conseguem mais rapidamente benefícios como progressão de regime, livramento condicional, visitas periódicas ao lar e trabalho externo, a partir do momento em que cumprem um sexto da pena. Essa regra vale apenas para crimes não hediondos.
Criminosos como Márcio José Sabino Pereira, o Matemático, conhecido como assassino cruel, morto no mês passado, e Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, ex-chefe do tráfico de drogas na Rocinha, nunca foram condenados por homicídio, de acordo com a Vara de Execuções Penais (VEP). Matemático foi condenado a 16 anos e seis meses de prisão por associação ao tráfico, posse ou porte ilegal de arma de uso restrito e falsidade ideológica. Em setembro de 2008, teve o benefício da progressão de regime e, em dezembro do ano seguinte, obteve autorização para trabalhar fora do presídio. Ele aproveitou para fugir. Já Nem só foi condenado, até o momento, a 15 anos e quatro meses de reclusão por associação ao tráfico.
Nos quatro tribunais do júri da capital, que julgam crimes contra a vida, há centenas de inquéritos nos quais existem apenas o registro da ocorrência, uma folha do Instituto Médico-Legal (IML) descrevendo as lesões da vítima de homicídio e várias páginas carimbadas tanto pela delegacia encarregada do caso como pelo Ministério Público. A delegacia informa que não conseguiu fazer as investigações requisitadas pelo promotor; este, por sua vez, devolve o inquérito solicitando mais informações. Num dos casos, O GLOBO contou 14 páginas desse tipo.
Inquéritos tipo pingue-pongue
Essas idas e vindas fizeram com que o sociólogo Michel Misse cunhasse a expressão “inquérito pingue-pongue”. Misse é organizador do livro “O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica”. Há casos, por exemplo, em que o filho da vítima foi ouvido apenas 16 anos depois do crime.
A concessão de benefícios em tão curto tempo gera uma sensação de impunidade, na opinião da promotora do III Tribunal do Júri, Carmen Eliza Bastos de Carvalho, já acostumada com os inquéritos mal produzidos.
— Eu acho que a criminalidade existe no mundo inteiro. O que não há lá fora é a impunidade que no Brasil impera. Esses benefícios dão uma sensação de impunidade. É preciso ter bom senso na hora de conceder uma progressão de regime. A gente vive uma realidade em que a sociedade quer o endurecimento das penas, porque a criminalidade está ousada. É difícil explicar para uma família que perdeu o filho assassinado que o réu está solto porque cumpriu um sexto da pena. É explicar o inexplicável — diz Carmen.
A juíza da Vara de Execuções Penais (VEP) Juliana Barros, responsável pela contagem das penas, ressalta que só lhe cabe a aplicação da lei:
— O juiz da VEP só executa a pena que o colega da vara criminal decidiu. É todo um processo em que a polícia investiga, o MP oferece a denúncia e o juiz condena. No caso do Sabino (Matemático), por exemplo, ele tinha inquéritos de homicídios, mas não tinha qualquer condenação por isso. A proposta do Senado agora para a reforma do Código Penal é justamente a de aumentar as penas. Assim, o preso terá de cumprir maior tempo de pena para fazer jus aos benefícios.
O aumento das penas para homicídios foi incluído, semana passada, no anteprojeto do novo Código Penal entregue ao presidente do Senado, José Sarney. A proposta é modernizar a legislação criada há quase 72 anos (é de dezembro de 1940), ainda na Era Vargas, e alterada de forma isolada ao longo do tempo. O promotor Alexandre Joppert, integrante da comissão de modificação da legislação penal da Câmara dos Deputados, diz que qualquer reforma do Código Penal tem que passar pelo crime doloso contra a vida.
— Buscamos um equilíbrio, para que a reforma não seja só um simples aumento das penas. A nossa meta é corrigir, depois de mais de 70 anos, algumas incoerências, até porque convivemos com um triste número: em média, 50 mil assassinatos ocorrem por ano no Brasil, um país considerado pacífico. A pena para homicídio simples, sem agravantes, no Brasil, se não é a menor, é uma das menores do mundo: seis anos de reclusão. Com um sexto da pena, o criminoso é beneficiado, ou seja, com apenas um ano de prisão. Na Argentina, a pena mínima para homicídio simples é de oito anos. Na Espanha, são dez anos; no México, 12; na Colômbia, 13; na Itália, 20; e na França, 30 — diz o promotor.
Enquanto as alterações na lei não ocorrem, algumas mudanças estão acontecendo de 2010 para cá na área de segurança. Na opinião do juiz do III Tribunal do Júri, Murilo Kieling, o estabelecimento de metas de combate à criminalidade por parte do MP e da Polícia Civil, com a criação da Divisão de Homicídios (DH), em fevereiro de 2010, ajudou a melhorar a qualidade dos inquéritos. Apesar disso, ainda há nos tribunais pilhas de inquéritos, que ele chama de “herança maldita”. Ainda são poucos os casos que se transformam em ações penais, por causa do legado de inquéritos malfeitos. É comum ver casos desse tipo prescreverem passados 20 anos.
Kieling acredita que o Rio está vivendo uma metamorfose no tratamento dos homicídios, porque, durante décadas, eles jamais foram priorizados.
— Uma sociedade que não investiga o crime de homicídio dá o primeiro passo para a sua própria insegurança. Ela tem que cobrar, exigir, não interessa se a vítima tem antecedentes criminais ou não. Por causa do tráfico, os homicídios atribuídos a essas organizações criminosas eram tratados apenas como mais um. O chamado “encontro de cadáver” era consequência de disputa entre traficantes e, portanto, sem repercussão, sem investigação. Durante muitos anos, montou-se uma montanha de inquéritos. A polícia encontra o corpo, e nem uma vírgula a mais. O caso ficava estagnado, sempre com a desculpa da deficiência de material e de pessoal. Não posso dizer que era responsabilidade exclusiva da polícia. Todos os atores são responsáveis por isso. Agora, no mapa estatístico dos mortos, não se separa rico do pobre, o caso que repercute ou não. Tudo vira número e mancha a imagem lá fora — diz o juiz.
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