Fonte: Correio Braziliense
Diretor executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção no país
Uma dificuldade permanente que atravanca o combate à corrupção no Brasil é a perspectiva moral sobre o problema. Tal perspectiva é caracterizada por atribuir a corrupção à moral individual das pessoas. Disso decorre que, para combatê-la, duas providências devem ser tomadas: educar as pessoas para serem honestas e punir quem não é.
Não é difícil detectar de onde isso vem, nem aquilatar o resultado de semelhante estratégia. Embora há três mil anos se apregoe o “não roubarás”, dificilmente alguém diria que isso tenha tido algum sucesso. É da matriz da perspectiva moral que sai o “combate à cultura da corrupção” apresentado como “programa”, sendo peculiar a muitíssimos de seus proponentes a produção, no facilitário, de diagnósticos tão rápidos quanto equivocados.
É ainda claro que, por explorar a falta generalizada de informação, a perspectiva moral se presta à exploração demagógica. É o que se verifica em três proposições que estão na ordem do dia, apresentadas como resposta aos protestos de rua do mês passado: 1) a ideia de transformar corrupção em crime hediondo; 2) a noção de que proibir o financiamento eleitoral por empresas impediria essas empresas de financiar eleições e os candidatos de buscar tais financiamentos; e 3) a extinção do privilégio de foro para membros do poder Legislativo.
Nesta ocasião não se abordarão os vários problemas implicados pela ideia de proibir o financiamento eleitoral por empresas. Isso já foi verberado muitas vezes no passado, algumas neste mesmo espaço. Basta observar que, entre outros defeitos, semelhante proibição simplesmente deslocará para o Caixa 2 o financiamento que hoje é feito no Caixa 1, sem benefício para o problema principal do sistema eleitoral brasileiro — o da falta de representatividade.
Examinemos o assunto da transformação de corrupção em crime hediondo. Em primeiro lugar, não é razoável equiparar o pagamento e recebimento de uma propina com o genocídio, o estupro de uma criança e outros crimes horrorosos.
Há quem justifique a hediondez da corrupção fazendo referência a pessoas que morrem porque postos de saúde não são construídos, porque merenda não chega às escolas etc. Ora, esse exato argumento deveria então ser usado para classificar a sonegação tributária — leva precisamente às mesmas consequências — como crime hediondo.
O problema principal com a ideia, porém, é que não importa o tamanho da pena se os corruptos conseguem adiar punições naquele que deve ser o pior sistema judicial do universo. Pode-se definir prisão perpétua para corruptos que isso de nada adiantará se o sistema judicial continuar a permitir que réus interponham infinitos recursos com efeito suspensivo em toda a escala dos tribunais. (Aliás, a punição de encarceramento por crime hediondo já foi repetidamente neutralizada pelo Supremo Tribunal Federal, de modo que nem isso voga de fato.)
Na mesma trilha do crime hediondo, vem a extinção do privilégio de foro para parlamentares. Desconfia-se que o entusiasmo dos moralistas pela proposta decorra da existência da palavra “privilégio” nesse instituto: se é privilégio, então deve ser eliminado.
Basta olhar para os resultados do sistema judicial para perceber que, ao contrário do que esses entusiastas afirmam, o privilégio de foro tem produzido condenações que não ocorreriam caso os processos correspondentes corressem na primeira instância. Os relatórios do Conselho Nacional de Justiça mostram que as Justiças estadual e federal são mais lentas do que os tribunais superiores.
Não bastasse isso, réus de processos que correm na primeira instância entram com recursos nos tribunais respectivos (estaduais, no caso da Justiça idem, e regionais, no caso da Justiça Federal). Se os recursos são negados nessas instâncias colegiadas, os réus entram com recursos no Superior Tribunal de Justiça,
no Supremo Tribunal Federal ou em ambos.
Como a simples apresentação de um recurso acarreta efeito suspensivo1 da pena, o resultado é que uma ação que corre na primeira instância percorrerá as infindáveis escalas de recursos até que, dezenas, de anos após, transite em julgado no STF.
Como ladrões de alto coturno têm bastante dinheiro para pagar os advogados que bolam tais recursos, a consequência da genial providência que ora se discute será tornar o que hoje é improvável — a condenação de parlamentares por corrupção — em virtual impossibilidade. Todos morrerão antes de cumprir pena.
Note-se ainda, que, caso ocorra a extinção do privilégio de foro para crimes de corrupção, todos os casos que se encontram em julgamento no STF serão jogados para a primeira instância: o mensalão, o mensalão mineiro do PSDB e os inúmeros processos a que respondem dezenas de políticos, entre eles o sr. Paulo Maluf — não por acidente, um vocal advogado da extinção do privilégio.
Em vez das investidas maldirecionadas da hediondez e do privilégio, melhor fariam os bem-pensantes se trabalhassem pela promulgação da emenda constitucional que leva o nome do ministro aposentado do STF Cezar Peluso: a eliminação do efeito suspensivo em caso de sentenças que tenham sido confirmadas em órgão judicial colegiado.
Ou seja, o sujeito que fosse condenado continuaria com o direito de interpor recursos contra a sentença condenatória, mas faria isso cumprindo a pena. É útil observar que a Ordem dos Advogados do Brasil se opõe à emenda Peluso.
Comments are closed.