Fonte: R7
As manifestações que tomaram as ruas do Brasil nos meses de junho e julho clamaram por mudanças junto ao poder público. Dos temas abordados por essas vozes dissonantes ao cenário atual, a corrupção teve destaque, mas engana-se quem pensa que ela é causa dos problemas do serviço público nacional. O problema dos desvios de conduta é na verdade uma consequência de outras questões, segundo as conclusões de um estudo da USP (Universidade de São Paulo).
Intitulada “A Conduta Moral na Administração Pública: Um Estudo com Ocupantes de Cargos Comissionados”, a tese de doutorado da psicóloga Nanci Fonseca Gomes entrevistou mais de 150 pessoas entre gestores, servidores ocupantes de cargos comissionados e assessores no Governo do Estado de São Paulo. Em entrevista ao R7, a autora comentou que grande parte do problema da corrupção e falta de ética no País se dá em razão da própria estrutura do poder.
— Tanto a formação social como a estrutura pública facilitam a corrupção. Vivemos em uma sociedade que deforma as pessoas em vários aspectos, os quais fazem com que muitas delas se tornem pessoas não cívicas, voltadas para elas mesmas. Na moralidade existem vários aspectos para explicar como as pessoas são ou não mais firmes para incidirem na corrupção, como compaixão, senso de justiça, senso crítico, resistência à violência, responsabilidade, alienação e consciência.
O estudo da USP demonstra que o fim da corrupção de políticos e gestores públicos brasileiros começa com o cidadão comum, independentemente de classe social. Aquilo que alguns chamam de “jeitinho brasileiro” como forma de generalização desemboca em uma atitude de protagonismo e consequente aceitação de atitudes incorretas, o que enfraquece o princípio ético que, em uma escalada da sociedade, atinge o ápice com escândalos de corrupção.
— As pessoas costumam achar que aquilo de errado que fazem, como jogar um papel na rua, é mais aceitável do que crimes do colarinho branco, por exemplo. Sempre há uma justificativa particular que minimiza aquele ato pessoal, a pessoa não considera tão grave. Então assim se desenvolve um cinismo, no qual o que se chama de “jeitinho brasileiro” aparece de forma indireta.
As mais de 150 pessoas convidadas a participar do estudo responderam a um questionário de 33 perguntas previamente definidas pela autora. Nelas, Nanci busca descobrir opiniões, sentimentos, valores e motivações do servidor e de suas atitudes, levando em conta os princípios éticos de suas funções.
Um grupo menor, de 15 pessoas envolvidas com gestão pública, passou para uma fase seguinte, no qual participou de uma entrevista de três horas com a autora, na qual foi realizada uma análise do discurso e outras qualidades que justificam ou não a existência da corrupção no poder. Algumas posturas justificaram o sentimento da população de que faltam princípios éticos nos bastidores do poder no País.
— Uma das perguntas que fiz aos entrevistados era o que ela considerava mais correto: o rouba mas faz, ou o não rouba e faz pouco? Muitas vezes a pessoa optava pela primeira alternativa, o que denota uma permissividade grande, confirmando muito do que ouvi durante os últimos 20 anos. Outra coisa importante é que falamos muito de corrupção como causa, mas ela na verdade é consequência da nossa moralidade hoje, da estrutura pública que temos. Se não mexer nela, se não trabalhar com as pessoas, na formação delas, será difícil mudar.
Abordagem da corrupção no Brasil chega à Alemanha
O documento final sobre a corrupção na gestão pública de Nanci Gomes atravessou fronteiras e chegou à Alemanha, onde virou livro e foi publicado pela Lambert Academic Publishing. No Brasil, ela disse que tentou, mas não conseguiu interessados em publicar o trabalho. A psicóloga revelou também que o trabalho começou por meio das próprias experiências, vividas durante o trabalho junto aos órgãos públicos de várias regiões do Brasil.
— Fui servidora pública por oito anos e trabalho há anos como consultora na área pública, trabalhando na formação de servidores. Em todas as instâncias com as quais trabalhei, tanto municipais, quanto estaduais ou federais, me chamou a atenção o discurso semelhante, no qual esses profissionais apresentavam uma postura cultural parecida. Em 20 anos ouvi muita coisa e me perguntava o que as fazia denunciar ou se envolver com a corrupção? Seria a estrutura do Estado que as levava até a corrupção, ou seria a estrutura moral?
De acordo com Nanci Gomes, além de trabalhar com as pessoas que formam o poder público nos mais variados níveis, é preciso lidar também com o sistema burocrático do Estado brasileiro, o qual facilita a corrupção, ora por inoperância, ora por não trabalhar princípios éticos fundamentais.
— É preciso trabalhar a conscientização crítica das pessoas que atuam no poder público. É preciso definir e estudar as implicações de cada um na máquina pública, com participação popular nisso. Além disso, é preciso que o servidor seja tratado de outra forma, já que muitos atuam em um trabalho por vezes sem sentido. Muitos deles acabam ficando apáticos, se sentindo impotentes em atuar e fazer alguma coisa para mudar algum quadro de corrupção que conheçam.
O desafio, segundo a autora do estudo, está em quebrar a estrutura vigente, algo que muitos beneficiários, dos mais distintos escalões, tendem a não querer romper. As vozes das ruas podem indicar uma ideia e uma vontade de mudança, porém a discussão precisa atingir também aqueles mesmos que dizem não suportar mais a corrupção.
— O professor Jurandir Freire Costa [psicanalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro] já fez uma análise sobre a cultura brasileira, na qual ele leva em conta quatro atributos: cinismo, delinquência, violência e narcisismo. E ele fala que esses quatro itens se deram muito na formação social do Brasil e ao consequente descrédito às instituições (…). Fiquei esperançosa com movimentos populares, parece que vamos mexer em alguma coisa, mas as pessoas não sabem no que exatamente. Elas não estão contentes com essa corrupção, mas o que é preciso mesmo é mexer no que leva à corrupção.
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