Fonte: Correio Braziliense
Com discurso duro, Dilma Rousseff abriu a Assembleia Geral classificando a espionagem dos EUA como violação dos direitos humanos. Ela cobrou explicações e propôs um marco mundial para proteger a internet. Obama ignorou o tema. Preferiu pedir o apoio das Nações Unidas para uma resolução contra a crise na Síria.
O descontentamento do governo brasileiro com a interceptação de comunicações pela inteligência norte-americana subiu à tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas com a presidente Dilma Rousseff. No discurso de abertura dos debates, privilégio atribuído ao Brasil desde a fundação da organização, em1948, a presidente adotou um tom duro e resoluto. Classificou o episódio como um “caso grave de violação dos direitos humanos e das liberdades civis” e defendeu o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança e o uso da internet. Seguindo a postura adotada desde o início da crise, Dilma subiu o tom. Mas, na avaliação de especialistas ouvidos pelo Correio, o discurso não deve aprofundar a crise na relação bilateral, sublinhada pela decisão da presidente de adiar a visita de Estado que faria em outubro a Washington.
A própria presidente já tinha adiantado que falaria sobre o tema. O Brasil foi um dos principais alvos dos serviços secretos americanos, que não pouparam nem mesmo as comunicações da presidente com auxiliares diretos, segundo revelou Edward Snowden, ex-consultor da Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês). Dilma, porém, surpreendeu pelas duras expressões que usou. Em uma passagem, lembrou a própria história de militância política. “Lutei contra o arbítrio e a censura e não posso deixar de defender de modo intransigente o direito à privacidade dos indivíduos e a soberania de meu país”, disse, diante de mais de 190 chefes de Estado e de governo. “Sem o direito à privacidade, não há verdadeira liberdade de expressão e opinião e, portanto, não há efetiva democracia. Sem respeito à soberania, não há base para o relacionamento entre as nações.”
Tema dominante
A presidente também destacou a posição do Brasil, contrária a uma resposta militar para a crise síria, e reforçou o papel fundamental da ONU na resolução do conflito. Dilma defendeu a resposta de seu governo aos protestos de junho no país. Mas foi a espionagem que mereceu mais atenção. A presidente abordou o tema em mais da metade do tempo de sua fala, que durou 22 minutos — porém, sem dirigir-se nominalmente aos EUA. A “interferência na vida de outros países”, segundo ela, “afronta os princípios” que devem reger as relações entre eles. “Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania”, ressaltou. O Brasil tem defendido que a discussão seja tratada no âmbito multilateral e, para tal, propôs o estabelecimento de um marco civil multilateral para a internet.
Na opinião do embaixador José Botafogo Gonçalves, presidente emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), depois de ter dado um ultimato ao presidente Obama e ao governo americano, não havia outra postura a ser adotada pela presidente a não ser a de subir o tom. Segundo Botafogo, Dilma colocou-se em uma posição complicada ao exigir desculpas e o comprometimento de Washington com o fim da espionagem contra o Brasil. “Houve um erro tático em dar um ultimato em um tema tão complicado”, afirmou o diplomata, acrescentando que passar da esfera bilateral à multilateral foi inevitável. A situação, porém, não deve agravar as relações bilaterais, avalia.
Em termos diplomáticos, a presidente foi “correta” e abordou o tema de maneira “incisiva”, na avaliação do professor de história contemporânea Virgílio Arraes, da Universidade de Brasília (UnB). O estudioso não acredita, porém, que o discurso venha a ter efeito prático ou repercussão nas Nações Unidas, uma vez que não foi encampado pelas grandes potências. “Até porque elas (grandes potências) se protegem e se resguardam mais do que o Brasil, e também porque têm interesses que vão além das próprias fronteiras. A questão da espionagem fica sempre na meia sombra na política internacional.”
A impressão parece ter sido a mesma nos EUA, segundo avaliação do professor Matthew Taylor, da Escola de Serviços Internacionais da American University. “Aqui, em Washington, parece quase consensual, entre aqueles poucos que estão prestando atenção, que as tentativas brasileiras de criar uma regulamentação internacional da comunicação na internet enfrentarão sérias dificuldades, tanto econômicas quanto políticas”, explicou. Na opinião do especialista, parece haver um entendimento entre EUA e Brasil para ultrapassar esse “momento difícil”. “Duvido que o discurso agrave a situação de atrito, mas, sem dúvida, ajuda a marcar a posição brasileira de repúdio à espionagem.”
Deu no…
The Washington Post
Repúdio contundente
Com essa expressão, o prestigiado diário da capital americana titula sua reportagem sobre o discurso da presidente brasileira, com direito à chamada de destaque na página inicial de sua edição on-line. O Post reproduz várias passagens da intervenção e ressalta a menção à espionagem dos EUA sobre comunicações privadas no país — inclusive as dela própria e da Petrobras — como “infração das leis internacionais e afronta ao Brasil”, além de “uma violação dos direitos humanos e das liberdades civis”. “”As atividades de espionagem americanas representam uma ameaça à democracia no mundo”, disse Rousseff, que propôs a regulamentação do ciberespaço pela ONU”, afirma o texto.
The Guardian
“Fúria” brasileira
Também o diário londrino destacou a participação de Dilma como um “duro ataque” à espionagem americana. O Guardian, considerado de orientação liberal, viu no discurso da presidente brasileira uma indicação de que o incidente provocado pelo rastreamento de comunicações arranhou as relações bilaterais. “O discurso furioso de Rousseff foi um desafio direto a Barack Obama, que estava esperando no corredor para fazer o seu pronunciamento, e representa a consequência diplomática mais séria, até o momento, das revelações feitas pelo ex-consultor da NSA Edward Snowden”, afirma a reportagem.
El País
Atentado à soberania
Na edição on-line do maior jornal espanhol, o discurso da presidente brasileira teve destaque na primeira página da edição local e foi manchete na edição dirigida às Américas. A reportagem observa que Dilma “em nenhum momento, referiu-se de maneira expressa aos EUA, mas foi veemente na hora de denunciar a espionagem internacional”. El País lembra que o incidente motivou o adiamento da visita de Estado que a presidente faria a Washington em outubro e foi discutido no encontro informal que ela teve com Barack Obama à margem da cúpula do G20, na Rússia. Quanto à justificativa americana, segundo a qual as operações teriam como fim exclusivo o combate ao terrorismo, o jornal conclui que não foi o bastante para convencer o governo brasileiro. “”O argumento de que essas operações se realizam em nome da segurança é simplesmente insustentável”, apontou Rousseff.”
Clarín
Guerra cibernética
“O ciberespaço não poder ser usado como arma de guerra”, foi a passagem da fala de Dilma Rousseff que o principal jornal da Argentina escolheu para o título de sua reportagem — com uma chamada secundária no bloco reservado à abertura da Assembleia Geral. “Já se sabia que a mandatária enviaria uma dura mensagem a respeito da espionagem global norte-americana, da qual ela pessoalmente foi vítima. E assim foi”, dispara a reportagem do Clarín.
Le Monde
Resposta à “afronta”
Para um dos maiores jornais franceses, o termo escolhido por Dilma Rousseff para definir o rastreamento de comunicações pela inteligência americana acompanha o tom da decisão de cancelar a visita de Estado aos EUA. “A brasileira aproveitou o discurso à Assembleia Geral para denunciar as escutas feitas pela NSA no Brasil como uma violação das leis internacionais e uma “afronta””, diz o texto. Segundo o Monde, Dilma “martelou” a tecla de que a alegação de defesa dos interesses de segurança dos EUA “é insustentável”.
Entre o marketing e a defesa nacional
O discurso da presidente Dilma Rousseff na abertura da Assembleia Geral da ONU alimentou no Congresso um cabo de guerra entre a base governista e a oposição. Para os adversários da petista, o pronunciamento foi eleitoreiro. Já os aliados disseram que a presidente marcou posição frente às denúncias de espionagem norte-americana.
O pré-candidato do PSDB à Presidência, senador Aécio Neves (MG), disse que o governo não deve tratar a defesa cibernética pela “ótica do marketing”. “Menos de 10% do orçamento para o setor neste ano foram utilizados, o que demonstra que, apesar do tom grave adotado hoje na ONU, a presidente da República e seu governo deram, até aqui, nenhuma importância a essa questão”, atacou.
Já o líder tucano na Câmara, Carlos Sampaio (SP), disse que Dilma errou ao cancelar a visita de Estado a Washington. “Se quisesse de fato cobrar explicações com mais veemência, a presidente deveria ter confirmado o encontro com o presidente Obama, em vez de apenas cobrá-lo na ONU.” O senador Jarbas Vasconcelos (PE), do agora ex-aliado PSB, disse que Dilma foi “medíocre”. “Foi um expediente totalmente eleitoreiro, medíocre, que envergonha a história da política externa brasileira. Foi uma iniciativa ruim para a senhora Dilma Rousseff e seu partido, porém muito pior, muito mais grave para o Brasil.”
A presidente foi defendida pelo líder do PT no Senado, Wellington Dias (PI). “Destaco o fato de ela ter criticado ali, perante o presidente dos Estados Unidos da América — são raros os líderes que têm coragem de se opor ao presidente do EUA”, ressaltou Dias. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que participou de audiência pública na Câmara sobre as denúncias de espionagem, também saiu em defesa de Dilma. “Ninguém é respeitado quando não se faz respeitar. No passado, houve muita subserviência (na relação com Washington). Hoje, não.”
Cardozo admitiu que o Brasil tem fragilidades na área de segurança e precisa “avançar” para se proteger contra ações de espionagem. Em defesa do governo, porém, ele lembrou que outros países também se surpreenderam com as denúncias sobre os norte-americanos, citando Alemanha e México.
“Isso é complexo de vira-lata (achar que o sistema de segurança do Brasil é pior que o de outros países). Foi uma surpresa mundial. O sistema do mundo parece debilitado. Temos fragilidades, mas todos os países do mundo parece que têm”, comparou Cardozo.
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