Fonte: Jornal da Globo
Cidade de Pilar (AL) tem mais de 100 homicídios por 100 mil habitantes.
Em 2011, mais de um milhão de roubos foram registrados em todo o Brasil.
Descobrir o culpado de um crime não basta para que ele seja punido. É preciso encontrar provas suficientes para condená-lo. E isso é trabalho da Polícia Judiciária, que nós conhecemos como Polícia Civil.
No modelo brasileiro de investigação, o delegado é o responsável pelo inquérito. Ele determina que perícias devem ser feitas, comanda os investigadores na busca de provas. Mas, nas delegacias brasileiras, um inquérito que termina como deveria é raridade.
VIOLÊNCIA EM ALAGOAS
A equipe do Jornal da Globo viajou para o interior de Alagoas para mostrar porque a polícia não consegue trabalhar direito em Matriz de Camaragibe, uma cidade de 23 mil habitantes.
Por dia, apenas quatro policias trabalham no distrito policial. As celas, que comportam 24 presos, têm 54. O delegado, que cuida de três delegacias, reclama.
“Para falar a verdade, não sobra tempo para quase nada. Porque a gente está com desvio de função. Em vez da gente estar investigando, que é a Polícia Judiciária, estamos tomando conta de presos. Isso é uma coisa que está acontecendo em todo o estado”, conta o delegado Belmiro Cavalcante de Albuquerque Neto.
Nem o jeito de paraíso esconde as consequências da impunidade de outra pequena cidade, que fica no litoral de Alagoas. Pilar é um dos municípios mais violentos do Brasil.
Em 2011, Pilar (AL) registrou mais de 100 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. A média brasileira é de 27 – e já é uma das mais altas do mundo.
“Os estados estão cada vez mais parecidos. Os que eram menos, ficaram muito violentos. E os que eram mais…São Paulo, Rio e Minas tiveram sucesso, até porque foram os primeiros a adotar políticas de controle do crime mais eficientes, com avaliação, de forma mais organizada”, aponta Leandro Piquet Carneiro, especialista do Núcelo de Pesquisas em Políticas Públicas da USP.
O promotor de Pilar chegou à cidade do ano passado e encontrou 247 inquéritos abandonados. “Estavam em um quarto úmido, insalubre de uma delegacia”, conta o promotor. Com a ajuda do juiz, conseguiu a criação de uma força-tarefa para retomar as investigações.
“Para a surpresa do Ministério Público, parte desses inquéritos já estão sendo devolvidos para o Ministério Público, sem que as autorias sejam conhecidas. Isso pode representar, digamos, a sacramentação da impunidade nessa comarca”, conta Jorge Dória, promotor de Pilar (AL).
“A partir do momento que não há uma resposta do estado, a determinada atitude delitiva e criminosa, aqueles que estão pensando em praticar, ou com uma vaga ideia, muitas vezes vão se sentir estimulados porque vão ver o exemplo que não foi dado. Pela falta de eficiência do estado ou pela demora”, analisa Alexandre Saliba, conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público.
VÍTIMA DA IMPUNIDADE
Uma das vítimas da impunidade em Pilar foi Yasmin Stefani Silva Santos, de apenas dois anos e sete meses de idade. No dia 4 de novembro do ano passado, a menina estava no colo da mãe, dentro de um táxi, no centro da cidade.
O pai, que é policial, leu no boletim de ocorrência que dois homens dispararam mais de 30 tiros. Yasmin e a mãe morreram na hora, na frente de dezenas de testemunhas, que nunca foram ouvidas.
“Isso dói, isso dói, porque eu não tive uma resposta ainda. Não sei porque fizeram isso, não sei quem foi que fez isso. A Justiça tem que tomar conta de tudo isso, e mostrar para toda a sociedade que o Brasil tem jeito e tem que ter força para que acabe. Acabar não acaba, mas diminua a violência no Brasil”, lamenta o pai de Yasmin.
“As soluções em geral são soluções simplistas, sem produção de diagnóstico. Enquanto a gente discutir segurança publica com o fígado, a informação não vai ser importante. Porque a informação traz a perspectiva na razão, da inteligência, do olhar mais sofisticado sobre o assunto”, diz Luciana Guimarães, diretora da ONG “Sou da Paz”.
FALTA PROVA TÉCNICA
As estruturas da Polícia Civil e da perícia variam muito de um estado para outro. Os resultados também. Enquanto no Pará foram expedidos quase 27 mil laudos em 2011, no Paraná foram mais de 6 mil, e, em Alagoas, 780 laudos periciais.
Com poucas provas técnicas e com os investigadores desviados de suas funções, os inquéritos brasileiros costumam depender de testemunhas que estejam dispostas a falar. O que nem sempre acontece.
“Você tem medo de testemunhar, você tem o medo de ser morto ou, pelo contrário, de ser inclusive envolvido numa situação. Porque os policiais, muitas vezes, entregam os nomes, então você cria um gap, você cria um hiato muito forte entre população e policia”, explica Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
HOMICÍDIOS NO PARÁ
Em Belém, no Pará, o oficial de Justiça Jefferson Bandeira conhece o medo da população. Ele tenta intimar testemunhas, mas quem atende é sempre um parente.
“É que eu tenho essa intimação para ele participar de uma audiência, mas já é a terceira vez que eu venho e não consigo encontrar com ele”, diz o oficial de Justiça na frente de uma casa. Uma senhora o vê e responde: “Eu tenho até medo de comparecer e depois, assim, de fazerem alguma coisa [contra mim], porque hoje em dia o senhor sabe como é’”, confessa ela.
O índice de homicídios do Pará caiu de 2010 para 2011. Mas ainda está muito acima da média nacional. O secretário de Segurança Pública afirma que os crimes encomendados, comuns no estado, estão sendo combatidos. “Uma região que, historicamente, existia muito esse tipo de crime era o Sudeste do estado. A região de Marabá (PA), por ali, pistolagem praticamente acabou”, diz Luiz Fernandes Rocha, secretário de Segurança Pública do Pará.
O que mais preocupa agora é a pistolagem urbana, as mortes por encomenda nas cidades. Thúlio Pinheiro tinha 20 anos. Era técnico em agrimensura e estudava para concursos públicos. Na véspera de uma prova, quando voltava do cursinho, foi confundido pelos pistoleiros.
De acordo com o inquérito, os dois criminosos deram a volta no córrego antes de se aproximarem de Thúlio, que estava em uma lanchonete. Ele foi executado com dois tiros na nunca, por engano.
O alvo era outra pessoa. Era um sábado, sete da noite, havia muita gente lanchando no local e vizinhos estavam do lado de fora, na rua, mas ninguém quis testemunhar.
O crime foi no dia 17 de novembro de 2012. Um ano e meio depois, a polícia não tem pistas dos matadores. “Já pensou ver impune, fazendo outro, outro e não resolver o meu. Como é que eu vou ficar? É muito triste”, lamenta Luzenira Pinheiro, mãe de Thúlio.
MUITOS CRIMES, POUCA INVESTIGAÇÃO
Em 2012, foram 1810 latrocínios registrados e mais de 50 mil mulheres foram estupradas. Em 2011, foram registrados mais de um milhão de roubos no Brasil.
Em São Paulo, que tem a maior polícia do país, apenas 2% dos roubos são investigados. E nem todos são resolvidos.
“Não é que a investigação é mal feita no caso do roubo, é que ela simplesmente não acontece. Na maioria dos casos, a pessoa registra o boletim de ocorrência e não tem uma continuidade, aquilo é só um papel. Você tem um papel que você foi roubado”, revela Guaracy Mingardi, especialista em segurança.
Privar um cidadão da sua liberdade porque ele cometeu um crime deveria ser uma forma de evitar novos erros. Um remédio. No Brasil, é um veneno. Nessas condições, ninguém aposta na recuperação dos detentos.
Na quarta parte da série Impunidade, veja o que acontece nas celas brasileiras. Algumas, nem grades têm. “Se tivéssemos com grades, ou portas nas celas, não caberiam todos os presos que habitam as galerias dentro das celas”, diz o tenente coronel Osvaldo Luis Machado da Silva, diretor de um presídio.
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