Contágio da droga
Cartéis sul-americanos da cocaína transformam ocidente africano em entreposto para o tráfico com destino ao mercado europeu. Maior parte dos carregamentos chega do Brasil em navios e pequenos aviões
Silvio Queiroz
Da equipe do Correio
Sasaki/Especial para o CB – 24/2/05 |
Diagnóstico “É uma rota relativamente nova, e ela confirma que os traficantes sempre buscam operar em países com instituições frágeis” |
Guerras sangrentas, epidemias, secas e surtos de fome já não são os únicos motivos que atraem a atenção internacional para a África. O continente de riquezas dilapidadas ou desconhecidas, onde a pobreza testemunha sobre o fracasso do processo institucional, foi desbravado na era das navegações por traficantes de escravos, metais e especiarias. Na virada do novo século, foi novamente “descoberto” – agora como escala para o tráfico de cocaína com destino à Europa. Coincidindo com a maior importância do Brasil no mapa múndi do narcotráfico, a costa atlântica africana, em especial o litoral do Golfo da Guiné, contribuiu para que as apreensões de cocaína em território africano se multiplicassem por 30 em três anos – de menos de 500kg anuais, em 2003, para 14 toneladas no ano passado, segundo dados do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC).
A rota do Atlântico, com escala na África Ocidental e destino final no sul da Europa, é conhecida das autoridades policiais internacionais há mais de uma década. Redes ligadas à máfia nigeriana transformaram o Golfo da Guiné em entreposto de negócios ilícitos: cocaína vinda da América do Sul, ópio e heroína levados da Ásia, armas para os conflitos locais e imigrantes africanos transportados clandestinamente para a Europa. Mas o relatório anual divulgado pelo UNODC em junho passado soa o alarme para um efeito colateral da ação constante do crime organizado: as fortunas movimentadas pelos barões da droga, superiores ao movimento da economia legal em vários países, corrompem autoridades, corroem instituições e criam alicerces para o que analistas começam a chamar de “narcoestados”.
O exemplo mais preocupante é o da Guiné-Bissau, país de língua portuguesa que está entre os mais pobres do mundo e vive seguidos golpes de Estado desde o fim dos anos 1990, o último deles em 2003. Com dezenas de ilhas a distância conveniente da costa, e situado a meio caminho entre os produtores sul-americanos e os consumidores europeus, o país movimentaria por mês volumes de drogas com valor calculado por especialistas em US$ 150 milhões (pelo preço no varejo), quantia equivalente a seu PIB anual. O representante regional do UNODC para o Brasil e Cone Sul, Giovanni Quaglia, vê algum exagero nesses números, mas ratifica a preocupação com a ex-colônia portuguesa, emancipada em 1974 e separada anos depois de Cabo Verde – outra escala da “rota atlântica”. “É uma rota relativamente nova, e ela confirma que os traficantes sempre buscam operar em países com instituições frágeis”, disse Quaglia ao Correio.
Guiné-Bissau, Cabo Verde, Senegal, Mauritânia, Togo e Burkina são os países mencionados como alvos dos cartéis da cocaína, sejam os mafiosos nigerianos ou sul-americanos – e, entre esses, os brasileiros se valem dos laços históricos com a região, reforçados nos últimos anos. As autoridades da Guiné-Bissau calculam que 60% da cocaína que chega ao país procede do Brasil, enquanto 40% saem diretamente dos laboratórios de refino na Colômbia. “A droga que segue daqui para a Europa, via África, é a com maior teor de pureza, destinada à exportação ou ao mercado brasileiro de maior poder aquisitivo”, explica o representante do UNODC.
Responsabilidade
É raro que se passe uma semana sem notícia da prisão, no Brasil, de uma “mula” – como são chamados os indivíduos aliciados por traficantes para transportar pequenas quantidades de drogas – que tentava embarcar para a África. Mas Giovanni Quaglia lembra que as maiores quantidades de cocaína cruzam o Atlântico em contêineres de navios, e um número menor de grandes carregamentos segue em avionetas. E, embora já identificada, essa rota tende a ser ainda mais utilizada acompanhando a expansão do comércio entre Brasil e África, cujo valor triplicou desde 2003.
À parte o esforço local de policiamento e inteligência, para dificultar o fluxo da droga pelo país, o governo brasileiro poderia contribuir diretamente com os países africanos, em particular os de língua portuguesa – inclusive Angola, um dos destinos pioneiros do narcotráfico no continente, inclusive pela vizinhança com o mercado consumidor sul-africano. “O Brasil pode ajudar com dinheiro para equipar e treinar as polícias”, afirma Giovanni Quaglia. “São países onde a polícia muitas vezes não tem carros, ou não tem gasolina, sem falar em armas”, diz o representante das Nações Unidas. “A responsabilidade, ao menos na África de língua portuguesa, é ajudar a criar instituições fortes. É quase como adotar um país.”
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Tráfico, extermínio e medo A guerra do tráfico nas cidades goianas do Entorno está destruindo famílias. Não são poucas as que têm na conta do sofrimento e da dor mais de um parente morto. Histórias de gente que testemunhou o assassinato de filhos, genros, sobrinhos, mortos pelos traficantes, começam a fazer parte da rotina de moradores dos municípios goianos de Valparaíso, Novo Gama, Cidade Ocidental, Luziânia e Águas Lindas, a menos de 70 km da Praça dos Três Poderes. Traficantes livres para matar
Impunidade faz mães conviverem diariamente com os suspeitos dos assassinatos de seus filhos
Amaury Ribeiro Jr.
Da equipe do Correio
Encorajados pelo clima de impunidade, traficantes e outros criminosos soltos nas ruas intimidam a polícia, os parentes de adolescentes e de jovens assassinados. O clima de terror toma conta dos moradores da região. “Podem até me matar, mas não suporto mais tanto descaso da polícia. Não agüento tanta impunidade. É duro ver os assassinos de seu filho e de seus genros soltos na rua”, desabafa a dona-de-casa Saltina Alves Pereira da Silva, sogra do adolescente Jonas Ferreira Nascimento, 16 anos, assassinado com cinco tiros na nuca, no último dia 16 de agosto, em Valparaíso.
O filho da dona-de-casa, Natalino Ferreira da Costa, 19 anos, e o outro genro dela, Marcos Paulo Pereira da Silva, também foram assassinados por traficantes no início da década. A exemplo do assassinato de Jonas, nenhum desses crimes até hoje foi elucidado. A dona-de-casa conta que toda a família vive sob a ameaça dos assassinos. “O homem acusado de matar Jonas, por exemplo, disse para minha filha(a viúva de Jonas) que vai matá-la se a polícia for chamada”, afirma Saltina.
Na nuca e nas costas
A dona-de-casa diz que o assassinato do adolescente foi planejado com frieza por um traficante que mora perto da residência dela. Horas antes de morrer, Jonas teria ido a uma festa em Brasília de bicicleta na companhia do suposto criminoso. Ao voltar da capital federal, o criminoso teria se aproveitado de um descuido do adolescente para executá-lo com vários tiros na nuca e nas costas. O crime ocorreu a duas quadras da casa onde Jonas morava em companhia da sogra, da mulher e de uma filha de dois meses.
A comerciante Vera Lúcia dos Santos, 42 anos, dona de um bar no Jardim Ingá, sabe exatamente o que Saltina Silva está sentindo. O filho mais velho de Vera, Franklin Cardoso Souza Jr, foi assassinado em 2001, aos 17 anos. No último dia 16 de julho, a mãe ainda chorava a morte de Franklin, quando recebeu a notícia de que seu filho caçula, Wellington Santos Silva, 16 anos, também tinha sido executado com dois tiros na nuca em um bar de posto de gasolina em Valparaíso. Segundo adolescentes da cidade, Wellington tinha dívidas com traficantes da região. “Ele nunca havia me dito que consumia drogas”, disse a comerciante.
Vera Lúcia só tem uma certeza: o crime do filho foi planejado. Segundo ela, no dia do crime Wellington foi convidado por um grupo de amigos da vizinhança para ir a uma festa em Valparaíso. Esses mesmos amigos voltaram à noite dizendo que o rapaz havia sido assassinado. “Estranhamente, todos os amigos se mudaram depois do assassinato do meu filho”, afirma.
Após a morte de Franklin, a comerciante se mudou de Valparaíso e montou um bar para sustentar as duas filhas . Em meio a fregueses violentos, busca força na Bíblia e na imagem de Nossa Senhora Aparecida para superar o sofrimento.Passados três meses, a comerciante lamenta o fato de até hoje não ter sido chamada para depor. “Só nos resta entregar o caso nas mãos divinas”, afirma.
Nenhum preso
Saltina Silva e Vera Lúcia dos Santos não tiveram nem mesmo o consolo de ver os assassinos de seus filhos serem presos. Segundo levantamento do Correio, nenhum dos 41 assassinatos de adolescentes de 13 a 18 anos, ocorridos este ano, foi solucionado. Em parte a impunidade é explicada por uma outra estatística que mostra o desaparelhamento policial e o descaso dos governos estadual e federal, e do Distrito Federal, para com a região.
Um exemplo: em Valparaíso, município com 4.131 habitantes, onde Wellington foi assassinado, a Polícia Civil só conta com 29 policiais civis. Isso significa que existe na cidade apenas um policial para cada 4.131 habitantes. Na Cidade Ocidental, onde as adolescentes Natália Oliveira, 14 anos, e Raiane Vieira, 17, foram assassinadas em agosto deste ano, o efetivo policial é ainda menor: um policial para cada 9.755 habitantes.
Além da falta de policiais, a polícia ainda enfrenta a falta de equipamentos básicos de investigação. Devido à precariedade da perícia de Goiás, os exames de DNA que poderão ajudar a polícia a elucidar os assassinatos de Natália e Raiane terão de ser feitos no Instituto de Criminalística do Distrito Federal.
Todo esse descaso do governo de Goiás leva os traficantes do Entorno, na região leste de Goiás, a agirem como xerifes e bandoleiros do Velho Oeste americano. No Jardim Ingá, por exemplo, os criminosos da cidade costumam iniciar as festas com vários tiros para o alto ou a esmo. As marcas de balas podem ser vistas nas latas de lixo, postes públicos e várias repartições, o que acaba intimidando ainda mais os moradores da localidade. “Está muito perigoso. Por isso minha mãe não deixa mais a gente sair de casa”, contou um garoto de 14 anos, que diz ter visto vários amigos serem executados pelo tráfico.
Ronaldo de Oliveira/CB Podem até me matar, mas não suporto mais tanto descaso da polícia. Não agüento tanta impunidade. É duro ver os assassinos de seu filho e de seus genros soltos na rua
Ação contra o DF e Goiás Defensoria Geral da União quer processar governos federal, estaduais e municipais por omissão Érica Montenegro Da equipe do Correio
O extermínio de jovens no Entorno será apurado pela Defensoria Pública Geral da União. Diante da morte de 150 pessoas de13 a 26 anos na região nos últimos seis meses, o defensor público geral da União, Eduardo Flores Vieira, pretende mover uma ação civil pública contra os governos federal, estaduais (Goiás e DF) e municipais. Para ele, a onda de violência escancara a falta de atenção dos administradores públicos à população do Entorno. “A população vive uma situação de descalabro social. As autoridades têm o dever de tomar providências para contê-la”, afirmou Eduardo Flores Vieira, que tomou conhecimento dos fatos por meio da reportagem publicada ontem no Correio Braziliense. Nesse caso, a atuação da Defensoria Pública Geral da União é referendada por sua missão de defender as parcelas menos favorecidas da população. “A Constituição garante direitos a estas pessoas que estão sendo sistematicamente desrespeitados. Os governantes precisam ser chamados a cumprir com seus deveres”, completou. “A Defensoria Pública parece estar desinformada quantos às medidas que estão sendo tomadas por nossa iniciativa para ajudar a região”, disse o secretário de Comunicação Social do GDF, Welington Moraes. “Com apenas oito meses de gestão o governador Arruda já executou diversas ações voltadas para a região, com investimentos que já passam R$ 16 milhões junto com o governo de Goiás, para melhorar a situação das nossas cidades vizinhas”, acrescentou. À tarde, em Águas Lindas (GO), sem saber ainda das declarações do defensor, o governador José Roberto Arruda sugeriu que os policiais brasilienses que compõem a Força Nacional de Segurança fossem deslocados para o Entorno. E comentou a crise: “Crime organizado, tráfico de drogas. Eu acho que não precisa mais de nada. É só ler o Correio de hoje (ontem). Temos que atuar juntos e ter a humildade de trazer para cá a Força de Segurança Nacional”, declarou. Políticas públicas O defensor público pretende basear a ação no artigo 23 da Constituição Federal que estabelece como uma das funções da administração pública a implementação de políticas para combater as causas de pobreza e evitar a marginalização social. “Vamos requisitar informações para saber se as políticas de moradia, saúde, educação e segurança estão sendo implementadas de maneira correta”, explicou Eduardo Flores Vieira. O prefeito de Cidade Ocidental, Plínio Araújo, reagiu: “Como podemos ser responsabilizados se não temos recursos para a segurança, lazer, saúde, educação? Precisamos de um fundo constitucional de verbas, como o de Brasília, que mantém seus quadros de saúde e segurança com dinheiro federal”. Eduardo Flores disse ainda que o DF – apesar de não ser o responsável legal pelos municípios do Entorno – pode ser acionado pela influência econômica e social que exerce sobre a região. Ele pretende apresentar a ação à Justiça Federal nos próximos 90 dias. Se for aceita, um cronograma de investimentos e outras providências terá de ser cumprido pelas autoridades. As competências de cada esfera do poder serão determinadas de acordo com a Constituição. A matéria sobre o extermínio de jovens no Entorno levou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, Luiz Couto (PP-PB), a fazer um registro no plenário. “É uma situação que, infelizmente, não é de hoje. Existe uma matança de jovens sistemática. Há gente do crime organizado, do tráfico de drogas, da banda podre da polícia se beneficiando”, afirmou o deputado, que investiga a situação do Entorno há mais de seis anos. “É uma zona esquecida pelos governos, um verdadeiro território sem lei”.
Eduardo Flores Vieira, defensor público da União
José Roberto Arruda, governador
Luiz Couto, deputado federal pelo PP-PB, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal |
cidades entre as mais violentas do país Adriana Bernardes Da equipe do Correio Um levantamento da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), do Ministério da Justiça, divulgado em novembro do ano passado, colocou três cidades goianas entre as 10 mais violentas do país. Destas, duas estão no Entorno do DF: Águas Lindas e Luziânia. Na primeira, são altos os índices de estupros e tráfico de drogas e apenas 30% dos crimes se transformam em inquéritos. Já em Luziânia, o crime mais incidente é o homicídio: são 66 para cada 100 mil habitantes. O dobro dos registros no Rio de Janeiro, na mesma pesquisa. “Os números da Senasp colocam o Entorno numa situação preocupante. Mas administrar, sem dúvida, pressupõe conciliar demanda com os recursos disponíveis”, disse Roller. A guerra no Entorno do Distrito Federal matou um jovem a cada 29 horas no primeiro semestre desse ano. Foram 150 assassinatos ao todo. Entre as vítimas, 41 eram garotos de 13 a 18 anos. Com uma população estimada de 810 mil pessoas, o Entorno Sul acumula outro dado alarmante. O número de policiais por habitante está muito abaixo do que é preconizado pela Organização das Nações Unidas. Enquanto o ideal é um policial para cada grupo de 600 moradores, em municípios como Cidade Ocidental a proporção é de um para 9.755 habitantes. Mesmo diante de números como estes, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Ernesto Roller, dispensou a ajuda da Força de Segurança Nacional. As declarações foram feitas no dia 28 de agosto, em Ceilândia, durante assinatura de cooperação técnica entre a União e os governos do Distrito Federal de Goiás. Entre os acordos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a pedido do governador José Roberto Arruda, autorizou que 100 homens da Força Nacional ficassem à disposição dos chefes do Executivo do DF e de Goiás, para combater a violência no Entorno. “Não há necessidade (da Força Nacional). Sem dúvida nossos homens dão conta do serviço. Temos a perspectiva de dar a resposta que a sociedade espera. Se houver necessidade, aportaremos mais efetivo de outras regiões do estado para o Entorno”, assegurou. Roller contabilizou um efetivo de quase 2 mil homens só na região que cerca o Distrito Federal. E acrescentou: o que espera do governo federal são investimentos na construção de presídios e aparelhamento das polícias Civil e Militar. “Vale dizer que o estado de Goiás tem feito a sua parte. Compramos armamentos, munição e mais de 5 mil coletes à prova de balas. Vamos entregar 172 viaturas para a região do Entorno e vamos abrir concurso para suprir 612 cargos na Polícia Civil. Tudo com recursos do tesouro do estado”, destacou. As vagas são para 112 delegados, 300 agentes e 200 escrivães. Pela primeira vez, em 28 de agosto, desde a execução de duas garotas em Cidade Ocidental, no dia 13, Ernesto Roller comentou o caso. “É lamentável. Investimos toda a força policial para que os responsáveis sejam punidos “, disse. A assessoria do secretário foi contatada mas não deu retorno até o fechamento desta edição. Colaborou Morillo Carvalho |
O que diz a lei |
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