Introdução
Os atos de investigação criminal, bem como a própria condução do inquérito policial, precisam ser democratizados no meio policial. Não se pode mais conceber, em plena era tecnológica do século XXI, que as diligências elencadas em rol exemplificativo do art. 6º do CPP só possam ser realizadas por apenas um cargo policial: o delegado de polícia, sob o argumento de exclusividade no exercício das funções de autoridade policial.
O mestre Guilherme Nucci ensina que o inquérito policial, com esse nome, surgiu com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, consistindo, segundo o art. 42: “em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”, sendo que a responsabilidade pela sua elaboração ficou a cargo da chamada Polícia Judiciária. [1]
Ocorre que, desde então, a forma de se apurar infrações penais e sua autoria pouco mudou, permanecendo ainda um sistema basicamente cartorial, com feições de processos judiciais, embora sendo inquisitivo, em que escrivães de polícia formalizam termos e certidões incontáveis no interior de delegacias abarrotadas de papeis; bem como em que agentes de polícia executam diligências, mais como se fossem oficiais de justiça, cumprindo despachos, do que como investigadores, devido à rigidez formalística do procedimento.
Em resumo, o inquérito policial, como existe hoje, é burocrático e centrado em despachos, para movimentar-se até a confecção do relatório final. Em tese, possui prazo legal para a conclusão, entretanto, raramente isso ocorre, pois é comum muitos demorarem anos até serem aproveitados como elemento informativo para a denúncia, caso o crime já não esteja prescrito, ou serem arquivados após manifestação do Ministério Público, seja por falta de justa causa ou outras razões de direito.
Apesar de tudo, ainda há defensores do pleno contraditório no inquérito policial, sendo completamente inviável, conforme discorreu o professor e desembargador aposentado, do TRF da 4ª Região, Vladimir dos Passos de Freitas, em artigo publicado em 2013:
Em suma, é preciso, sim, avançar no campo das investigações criminais, fazendo com que sejam atreladas ao mundo contemporâneo. Isto pode resultar na mudança e até mesmo no fim do inquérito policial. No entanto, mudar para que o inquérito permaneça como está, só que sob o crivo do contraditório, é dar um passo atrás. [2]
1.DA CRISE NA PERSECUÇÃO CRIMINAL NO BRASIL
A doutrina nos mostra que temos um sistema processual penal próprio, com classificação de misto ou acusatório formal, entretanto, com uma particularidade quase que exclusiva no mundo: a fase de inquérito é sediada na própria polícia judiciária. Diferentemente do que ocorre em outros países, onde a polícia é vinculada funcionalmente ao juizado de instrução e/ou ao ministério público; entretanto, mesmo nesses países, a polícia possui plena autonomia administrativa e é eminentemente técnica, sem qualquer viés jurídico, sendo que, na prática, acaba por conduzir a investigação criminal segundo sua expertise.
Aqui, em terra brasilis, devido à singularidade do papel da polícia judiciária no sistema, em conduzir a fase de inquérito, em regra, com discricionariedade, tem levado a observarmos na imprensa reportagens recorrentes sobre desentendimentos entre delegados e membros do ministério público; pois, ao MP cabe: o controle externo da atividade policial; o poder de requisição de diligências e de instauração de inquéritos policiais; além do pedido do próprio arquivamento do procedimento investigatório ao juízo competente, como titular da ação penal. Ou seja, a visão dos fatos e do desenrolar da investigação pela polícia não é necessariamente a mesma do titular da ação penal, o que gera o conflito, estampando a falha em nosso sistema.
Como exemplo desses conflitos, ocorreu quando, em certa comarca, houve a formulação de uma recomendação ministerial, para que os relatórios de inquéritos policiais fossem simplesmente narrativos, sem argumentações jurídicas, tendo em vista que a opnio delicti deveria ser formada apenas pelo titular da ação penal. A notícia pode ser acessada neste link: “Promotor diz em documento que delegada não pode fazer juízo de valor em inquérito.”.
A narrativa acima acerca dos conflitos ganha suporte, quando se verifica o teor do relatório de estudo do Grupo de Trabalho Intercameral do MPF, elaborado em 2016, com vistas à “Modernização da Investigação Criminal”, consubstanciando-se de propostas legislativas para o Projeto de Lei nº 8.045/2010 – Novo Código de Processo Penal. Da leitura do documento, percebe-se uma preocupação muito grande daquele órgão ministerial com todas as questões relacionadas à investigação criminal, como: a sua simplificação e desburocratização; o ciclo completo de polícia; a inexistente política de investigações criminais; as audiências de custódia; o indiciamento policial; o juiz de garantias etc. O referido estudo, citando Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner assim assevera:
Constatando a irracionalidade e a ineficiência de um sistema de persecução em que o Ministério Público fica alheio às atividades de investigação, Códigos de Processo Penais vêm sendo, ao redor do mundo, reformados ou editados desde a década de 1970 sob o lema de que “quem acusa conduz a investigação”, pois o titular da ação penal é quem melhor pode determinar o que é necessário para sua atuação em juízo. Uma investigação distanciada do titular da ação penal corre sempre sérios riscos de resultar em desperdício de recursos públicos, pois, não concatenada às necessidades de convicção do MP, tende a ser arquivada. Não é por outro motivo que, após levantamentos, o Ministério Público Federal constatou utilizar apenas 25% dos inquéritos da Polícia Federal para a propositura de ações penais. [3, p. 13]
Importante destacar, da leitura do documento, que com base nessa lógica mundial, em que o MP vem assumindo a condução da investigação criminal – manu propria ou pela simples supervisão da atividade policial – é o fato de que, mesmo no Brasil, isso não teria o condão de afastar do MP seus deveres de fiscal da lei e de garantidor dos interesses sociais e individuais indisponíveis, cravados no art. 127, caput, da constituição federal. Ou seja, não se constituindo o MP em mero órgão acusador, mas essencialmente de órgão fiscalizador da imparcialidade do judiciário e de promotor da justiça, em última análise.
Ademais, importante esclarecer que, conforme explica o professor Tourinho Filho, há o chamado Estado-Administração, destinatário da investigação criminal, e o Estado-Juiz. O primeiro é representado pelo MP, que tem o direito subjetivo público de, existindo comprovada justa causa, iniciar a ação penal e provocar o segundo, o Estado-Juiz, a proferir sentença penal no caso concreto. [4] Entretanto, não existindo mais justa causa, por erro ou outro fato de direito, o próprio MP deve pedir o arquivamento (art. 28 do CPP) ou a absolvição (art.385 do CPP), sob o manto do estrito cumprimento do dever legal. Dessa forma, fecha-se o sistema, concretizando-se o mandamento constitucional.
Finalmente, o referido documento também faz duas curiosas menções ao atrasado sistema de persecução penal brasileiro, sendo que a primeira diz respeito ao crescente abandono dos sistemas baseados nos chamados juizados de instrução (sistemas mistos ou acusatórios formais), em que juízes ao dirigirem uma instrução preliminar tomam medidas de ofício, o que certamente acaba por invadir atribuições próprias do MP.
Na América Latina, os novos códigos processuais, com contornos acusatórios, passaram a viger nos seguintes anos: Argentina (2016, no âmbito federal e, antes, em várias províncias); Bolívia (2001); Chile (2000); Colômbia (2005); Costa Rica (1998); Equador (2014); El Salvador (1998); Guatemala (1994); Honduras (2002); México (2016); Nicarágua (2002); Panamá (2009); Paraguai (1999); Peru (2006); Porto Rico (1963); República Dominicana (2004); Uruguai (2017)9 e Venezuela (2009). [3, p. 37]
A segunda menção diz respeito ao “indiciamento” na esfera policial. O estudo assiná-la que o “indiciamento” jamais poderia decorrer de um ato policial, pois possui suas origens nos países da commom law, sendo o indicativo “indictment”, nada mais sendo do que a própria denúncia ofertada pelo Ministério Público, já na fase judicial.
Nos países nos quais se estipula um juízo de admissibilidade da ação penal por um Grand Jury, o indiciamento é o ato em que o órgão oficial de prossecução penal – entenda-se Ministério Público – apresenta suas razões para justificar o julgamento criminal, por um Petit Jury. Tal sistema é o adotado pelos países da common law, como se vê no manual dos “U.S. Attorneys”. [3, p. 52]
Importante salientar que, o “indiciamento”, apesar do contraponto acima, hoje está previsto na Lei nº 12.830/13 em seu art. 2º, §6º: “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”. Entretanto, também registrar que a referida lei é alvo das ADINs 5043 e 5073, no STF.
2.PROPOSTAS PARA MUDANÇA DE PARADÍGMA
Dito isso, voltemos à questão inicial acerca da democratização na condução do inquérito policial e nos seus atos de investigação, notadamente previstos no art. 6º do CPP, de modo a imprimir mais celeridade e eficiência às investigações criminais, no âmbito policial. Primeiramente, cabe ressaltar que o procedimento administrativo do inquérito policial vem sendo formatado, desde a sua gênese, como uma espécie de instrução preliminar, a exemplo daquelas existentes nos países em que ainda adotam os juizados de instrução criminal, ou seja, com os formalismos inerentes à atividade jurisdicional, o quê, acredita-se, não era este seu propósito, ou pelo menos jamais deveria ter sido.
A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a Autoridade Policial procede a uma investigação não contraditória colhendo as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma e da respectiva autoria. [5]
Em segundo lugar, chamar a atenção para a recente decisão do STF, em 22/09/2017, no RE 1050631 / SE, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, no qual reconheceu a qualidade de Autoridade Policial para todos os agentes policiais, para fins do art.144, da CF/88, in verbis:
“28. A interpretação restritiva que o recorrente quer conferir ao termo ‘autoridade policial’, que consta do art. 69 da Lei nº 9.099/95, não se compatibiliza com o art. 144 da Constituição Federal, que não faz essa distinção. Pela norma constitucional, todos os agentes que integram os órgãos de segurança pública – polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, policias civis, polícia militares e corpos de bombeiros militares –, cada um na sua área específica de atuação, são autoridades policiais”. [6]
Com efeito, mesmo o CPP não disse qual servidor policial seria a autoridade policial responsável por conduzir o inquérito policial, ou para fins de tomar as providências, exemplificativamente, elencadas no art. 6º da referida norma, deixando tais questões para as leis que definem as atribuições dos cargos ou postos em cada organização policial. Ademais, mesmo a Lei nº 12.830/13, objeto de ADINs, não confere tais diligências investigativas de forma privativa aos dos delegados de polícia, somente o fazendo com o chamado indiciamento.
Entretanto, são comuns leis e normativos internos das polícias judiciárias caracterizarem como indelegáveis as atribuições a que o CPP, expressamente, confere às autoridades policiais, criando-se, assim, impedimentos legais para que os demais cargos policiais possam exercer tais atribuições, as quais deveriam ser básicas para qualquer policial bem servir a sociedade.
Poder-se-ia dizer que, tal dificuldade estaria superada por ato de “delegação” de atribuições, entretanto, para o Direito Administrativo, segundo a melhor doutrina, delegações sem leis autorizativas são nulas, bem como, delegações de atribuições próprias de cargos públicos, ou seja, não concorrentes, confrontariam com os art. 37, inciso II e art.39, ambos da CF/88, que justificam a própria criação de determinado cargo público.
Registra-se que, a comparação com o que ocorre no poder judiciário, em que um oficial de justiça executa uma diligência como “longa manus” de um juiz, não pode ser utilizada como solução no meio policial. Isso porque, simplesmente, o oficial de justiça não executa nada além de suas atribuições definidas em lei, ou seja, todas as atribuições do juiz, constantes no CPP, são por ele executadas e assinadas. Claro que os juízes e promotores possuem assessores jurídicos, para pesquisas em jurisprudência etc. Entretanto, são todas tarefas constantes como atribuições legais desses cargos.
Outra solução, para imprimir mais eficiência e celeridade ao procedimento, seria a instituição dos chamados GIs (gabinetes de investigações), coordenados por um delegado de polícia; entretanto, diante da ausência de atribuições de autoridade policial, para os demais policiais da equipe, os problemas de formalização de atos de investigação permaneceriam sem solução.
Dessa forma, afirmamos que, para além das proposições apontadas pelo estudo do GT do MPF, que inclusive contempla a tomada de depoimentos por meio audiovisual, é preciso dotar todos os servidores policiais de atribuições de autoridades policiais. Entendendo-se que, a expressão: “e seus agentes”, constante de forma isolada no art. 301 do CPP, significa, simplesmente, que será “agente da autoridade” todo aquele servidor policial, independentemente do cargo, que não estiver, em determinado momento, conduzindo um inquérito policial.
Adicionalmente, como ocorre nas melhores polícias do mundo, sugerimos que devemos adotar uma mudança de paradigma na escolha dos servidores para a condução de determinada investigação criminal, levando-se em consideração critérios, tais como: de experiência, antiguidade, cursos de especialização na área e, preferencialmente, com formação profissional em área afim com o objeto da investigação. E não como ocorre hoje, exclusivamente nas mãos de um Bacharel em Direito, de maneira judicialiforme.
Assim, como o estudo do GT destaca, há necessidade de desburocratização imediata do inquérito policial e uso massivo de meios eletrônicos, ao invés do escrito. Outra sugestão nossa, aproveitando a multidisciplinaridade de formação dos servidores policiais, seria a de dar um status de “laudo preliminar” à investigação criminal, ou a partes dela, que necessitem de uma afirmação técnica mais precisa, dispensando, em certo grau, de um perito para tanto. Por exemplo, uma determinada investigação de desvios de recursos, em uma obra pública, a princípio seria bem conduzida por 02 (dois) investigadores, responsáveis por todos os atos de formalização, sendo que pelo menos um deles tivesse formação em engenharia.
Com efeito, as modificações propostas não tem o condão de serem exaustivas, bem como imunes a aperfeiçoamentos e ponderações, entretanto, não é mais possível que a celeridade e a eficiência nas investigações criminais sejam retardadas por mais tempo. Não se admite mais contratar servidores policiais para secretariar; digitar termos com velocidade, em plena era da informática; tirar plantões em delegacias sem poder decidir nada; para dirigir viaturas ostensivas e para entregar intimações de comparecimento em delegacias. Tudo isso por falta de atribuição legal, mesmo possuindo capacidade e grau de escolaridade compatível.
3. CONCLUSÃO
Finalmente, lembrar que a recente decisão do STF afirmou o óbvio, que todos os agentes dos órgãos de segurança pública são autoridades policiais, para bem servir à sociedade. Nessa esteira, precisamos entender, de uma vez por todas, que para uma eficiente e célere a atividade de investigação criminal, todos os policiais devem ser dotados de treinamento e qualificação constantes, bem como de poderes de decisão básicos, inerentes a qualquer investigador, pois as vítimas, o ofendido, as testemunhas, o investigado e o advogado esperam sempre pelo contato direto com a autoridade policial em todas as situações.
4.REFERÊNCIAS
1. | 1. NUCCI, Guilherme. Origem e razão de ser do inquérito policial. http: //www.guilhermenucci.com.br, 2015. Disponivel em: <http://www.guilhermenucci.com.br/dicas/origem-e-razao-de-ser-do-inquerito-policial>. Acesso em: 02 março 2019. |
2. | 2. FREITAS, Vladimir Passos De. Inquérito policial não combina com o contraditório. https://www.conjur.com.br, 2013. Disponivel em: <https://www.conjur.com.br/2013-nov-10/segunda-leitura-inquerito-policial-nao-combina-contraditorio>. Acesso em: 04 março 2019. |
3. | 3. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. MODERNIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. www.mpf.mp.br, 2016. Disponivel em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/relatorios/011_16_modernizacao_investigacao_criminal_online_4.pdf>. Acesso em: 26 fevereiro 2019. |
4. | 4. TOURINHO FILHO, Fernando Da Costa. Manual de processo penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 10 |
5. | 5. TOURINHO FILHO, Fernando Da Costa. Manual de Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 30 |
6. | 6. BRASIL, STF. http://stf.jus.br/portal. http: //stf.jus.br/portal, 29 setembro 2017. Disponivel em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia>. Acesso em: 09 março 2019. RE 105631/SE. |
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