Fonte: Valor Economico
Em meio às denúncias da operação Porto Seguro voltou a ganhar relevo um debate importante sobre a nova lei da Advocacia-Geral da União (AGU).
Um dos temas centrais é: “devem os consultores jurídicos dos ministérios serem necessariamente advogados da União de carreira? Ou o governo pode recrutar bons profissionais no mercado?”
Os setores corporativos se apressaram a dizer que a atual crise mostra que deve-se dar mais poder aos concursados. Mas vale lembrar que a maioria dos envolvidos na operação Porto Seguro era de servidores de carreira. Portanto, misturar este caso com o debate da lei é um equívoco.
As bases teóricas que fundamentam o crescimento das carreiras de Estado não foram atualizadas
A discussão aqui é outra e revela a ponta de um iceberg que deve ser exposto para que possamos debater a fundo que tipo de Estado nós queremos. Um debate sobre república e democracia. As duas podem conviver?
Se o governo Fernando Henrique apresentou uma proposta de reforma do Estado ambiciosa, formatada por Bresser-Pereira – proposta que se pode defender ou rejeitar, mas que foi publicamente apresentada -, o governo Lula produziu uma profunda reforma do Estado, mas nunca apresentou um plano claro ou uma discussão profunda de suas consequências.
A reforma que ocorreu nos dois mandatos Lula passou pela recuperação do Estado como ator de produção do desenvolvimento e de redução das desigualdades. O investimento no setor público estatal foi enorme com abertura em massa de concursos públicos e aumento dos salários dessas carreiras. Segundo o Ministério do Planejamento foram contratados 151,2 mil servidores públicos por concurso durante o governo Lula contra 51,6 mil no governo FHC. A despesa média por servidor teve um crescimento real de 70% no período. Polícia Federal, Receita Federal, gestores públicos, diplomatas e várias outras carreiras foram reestruturadas e revalorizadas.
Mas qual o destino dessas carreiras? Qual o papel do servidor público em um Estado forte no início do século XXI? As bases teóricas que fundamentam o crescimento das carreiras de Estado foram formuladas em um contexto econômico completamente distinto do atual e não parecem ter sido atualizadas.
Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo, em um de seus mais importantes trabalhos, já alertou para os riscos para a democracia de um Estado que tem na burocracia técnica o motor político para a condução de seus rumos. Para Cardoso, a formação de anéis burocráticos é o resultado de uma aliança perversa entre interesses privados e a burocracia legitimada pelos concursos públicos. Essa aliança se apoia na ideia de “ilhas de racionalidade” que se opõem a toda influência externa na produção de políticas públicas, como se a racionalidade pudesse propor uma única alternativa – técnica e correta – para os problemas da sociedade.
As influências externas seriam sempre contaminadas por interesses espúrios.
Ocorre que este tipo de pensamento exclui a permeabilidade do Estado a demandas da sociedade civil. É um pensamento que sugere que, para construir um Estado republicano, seria necessário abdicar da democracia. O voto perde o sentido de manifestação da vontade popular para a mudança de rumos do país, pois não haveria espaço para opções políticas. E este é o centro do debate. Sempre há espaço para opções políticas.
Uma visão sobre o Estado que imagine que a corrupção seja um produto necessário da política é evidentemente autoritária e retira das pessoas completamente a esperança de poder influir nos destinos da nação. Se temos críticas à qualidade dos políticos devemos pensar em maneiras de reformar o sistema político e não em diminuir o espaço da democracia em nossa república.
É claro que isto não significa que o Estado não deva ser composto, sobretudo, por servidores concursados. Ou que o Estado não deva possuir uma estrutura bem remunerada e bem qualificada de servidores. A questão é que falta um debate sério sobre o papel desses servidores. Ou da relação desses servidores com a democracia.
Os servidores concursados devem oferecer aos políticos cenários e subsídios para que estes façam as melhores escolhas; devem ser os melhores profissionais para executar essas escolhas e devem estar cientes que têm que ter uma profunda lealdade tanto com a república quanto com a democracia.
E o que tudo isso tem a ver com os consultores jurídicos dos ministérios? Não há dúvidas de que os advogados da União devem constituir a esmagadora maioria da força de trabalho jurídico do governo federal. Entretanto, o papel dessas consultorias é um papel fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas.
Elas não funcionam como mero órgão de controle da administração, ao contrário, o seu papel precípuo é fornecer os instrumentos jurídicos para que as decisões políticas possam ocorrer.
E esses instrumentos jurídicos se desenham a partir de opções políticas. Não existe um parecer jurídico desprovido de visão política. Cotas para negros são constitucionais? A demarcação de uma determinada terra indígena deve ser feita? Um determinado preso deve ser extraditado a seu país? Essas são perguntas que até mesmo o STF pode se dividir ao respondê-las. Não é possível, portanto, esconder o caráter político dessas decisões jurídicas.
É por isso que o ministro deve poder escolher o seu consultor jurídico. Trata-se do interlocutor qualificado, que compartilha de suas visões políticas, e poderá gerir uma equipe de advogados públicos aptos a darem suporte jurídico às políticas públicas definidas pelo executivo.
Conjugar uma burocracia eficiente com atores que tenham o respaldo da escolha das urnas é a única maneira de se conciliar república com democracia. E a Constituição não admite que se abra mão nem de uma nem de outra.
Pedro Abramovay é professor da FGV Direito Rio
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