Fonte: Consultor Jurídico
Em artigo publicado no CONJUR a estratégia dos delegados permanece: não mudar ou mudar o que parece mais difícil, para não mudar…
“Antes de discutir o ciclo completo, é preciso desmilitarizar a polícia”
Nesse campo de ideias, o sucateamento do aparato investigativo estatal é campo fértil para o surgimento de concepções polêmicas e mirabolantes, escoradas num legislador cada vez mais ávido em satisfazer a opinião pública com um Direito de emergência. Algumas propostas, por iniciativa e apoio de parlamentares oriundos da caserna, ignoram a pluralidade de mecanismos de controle social e reduzem o problema da criminalidade à Polícia, mais especificamente à investigação criminal. Com essa visão distorcida, propõe-se que policiais fardados possam investigar civis, como se essa aberração representasse o remédio para todos os males. Com a lente enviesada, enxergam num problema a solução.
Leia na íntegra artigo Conjur:
Por Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
O interrogatório é muito fácil de fazer;
Pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar;
Pega o bandido e dá porrada até matar. [1]
Não foi por acaso que a Constituição da República conferiu os poderes de prevenção (policiamento e patrulhamento ostensivo) à Polícia Militar, à Polícia Rodoviária Federal e à Guarda Municipal (artigo 144, parágrafos 12º, 5º e 8º da CF), de um lado, e de repressão (investigação criminal) à Polícia Civil e à Polícia Federal (artigo 144, parágrafos 12º e 5º da CF), de outra banda. Cuida-se de conquista histórica, que objetiva evitar a hipertrofia de quaisquer das instituições policiais, servindo como contenção ao arbítrio estatal.
A outorga da atribuição de investigar crimes comuns à Polícia Judiciária não assusta, porquanto o delegado de Polícia é o único policial que faz parte de uma carreira jurídica, como confirmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal [2] e pelo legislador no artigo 2º da Lei 12.830/13. Já quanto aos oficiais da Polícia Militar, ainda que tenham formação de grau superior, o STF já deixou claro que suas atribuições não são “sequer assemelhadas às da carreira jurídica” [3]. O Superior Tribunal de Justiça, de igual forma, sentenciou que a atividade do miliciano “não caracteriza atividade relacionada a carreiras jurídicas” [4]. A mesma conclusão atinge os policiais rodoviários federais e os guardas municipais, pois onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito.
Não por outra razão a doutrina sublinha que todo policial militar, do mais moderno soldado ao mais veterano coronel, é considerado um agente da Autoridade Policial. De igual maneira ocorre com o patrulheiro e o guarda municipal [5]. Constatação essa que não importa em qualquer demérito para a importante função desempenhada pelos policiais fardados, mas apenas esclarece qual a missão de cada um na persecução penal, colocando cada personagem em seu respectivo lugar [6].
Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a incompatibilidade da Polícia Fardada com a tarefa investigativa, que deve ser presidida pelo delegado de Polícia [7].
Vistas essas premissas jurídicas, não se nega que o sistema de Segurança Pública brasileiro, tão combalido pela falta de investimentos, pode ser aperfeiçoado a fim de que consiga maior eficácia na prevenção e repressão à criminalidade. Tanto que há diversas proposições legislativas que almejam esse desiderato.
Nesse campo de ideias, o sucateamento do aparato investigativo estatal é campo fértil para o surgimento de concepções polêmicas e mirabolantes, escoradas num legislador cada vez mais ávido em satisfazer a opinião pública com um Direito de emergência. Algumas propostas, por iniciativa e apoio de parlamentares oriundos da caserna, ignoram a pluralidade de mecanismos de controle social [8] e reduzem o problema da criminalidade à Polícia, mais especificamente à investigação criminal. Com essa visão distorcida, propõe-se que policiais fardados possam investigar civis, como se essa aberração representasse o remédio para todos os males. Com a lente enviesada, enxergam num problema a solução.
É nesse contexto que surge a discussão acerca do famigerado ciclo completo de polícia. Trata-se de modelo no qual as tarefas de prevenção de delitos e investigação criminal se reúnem na mesma Polícia. Isto é, a própria instituição policial responsável pela captura do sujeito em flagrante delito poderia formalizar o termo circunstanciado, auto de prisão ou apreensão em flagrante e toda a investigação ulterior, realizando o controle de legalidade da ação policial e coibindo eventuais abusos.
Nota-se que o ciclo completo de polícia não é inaceitável por si só. O que é inconcebível é a militarização desse arquétipo, criando uma Polícia Militar com superpoderes, a exemplo do que se pretende com a Proposta de Emenda à Constituição 431/2009.
A monstruosidade de uma investigação criminal presidida por miliciano salta aos olhos. Agride o ordenamento jurídico e o bom senso imaginar um policial fardado, integrante de carreira não jurídica, lavrando autos de prisão em flagrante, fazendo análises sobre tipificação material, concurso de crimes, nexo de causalidade, tentativa qualificada, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, imunidades, erro de tipo, entre outras.
Não podemos olvidar que a prisão em flagrante constitui um instrumento constitucional de imediata proteção aos direitos fundamentais. A restrição de um direito fundamental (liberdade de locomoção) só se justifica pela proteção do bem jurídico contido no tipo penal violado, sendo que apenas uma autoridade oriunda do meio jurídico pode ser capaz analisar as inúmeras circunstâncias que influenciam na caracterização de um crime, observando-se os direitos e garantias fundamentais do suspeito. [9]
Justamente por isso, entendemos que não se deve sequer discutir a proposta de ciclo completo antes de se extirpar o militarismo da Segurança Pública brasileira. É dizer: a desmilitarização precede o debate. Esse alerta vem sendo feito por juristas[10] e estudiosos das ciências sociais[11], e até mesmo por militares. [12]
Nesse ponto, irretocável a lição do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM):
Tristemente pouca, nossa memória. Resultado de uma grande mobilização civil pela democratização do país, a Constituição de 1988 adverte-nos quão perigoso é atribuir a militares investigações estranhas ao seu universo próprio. (…) Ora, uma instituição militar não é estruturada a partir da formação jurídica de seus quadros. Não é voltada à cultura do direito enquanto um valor em si mesmo. (…) Por trás de todas essas propostas esdrúxulas, o movimento subjacente é nítido. Trata-se de militarizar a própria ideia de segurança pública, reclamando-a da cidadania que é seu espaço próprio para confiná-la nos quartéis, batalhões e dependências tais. [13]
Noutro editorial, prossegue o IBCCRIM:
Já é passada a hora de o Estado restituir à sociedade a polícia que a última ditadura lhe subtraiu. Caso contrário, a presidência da Polícia Judiciária, outrora envergando a toga, estará prestes a apresentar-se de farda à sociedade, a dano da boa administração da justiça criminal que há tempos se aguarda. [14]
Na mesma linha estão o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas[15], a Corte Interamericana de Direitos Humanos,[16] a Anistia Internacional,[17] a Comissão Nacional da Verdade[18] e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos[19]. Ora, se a sociedade moderna defende que sequer o policiamento ostensivo deve ser feito por instituição militar, com maior razão não pode prevalecer um regime castrense de investigação criminal.
Fácil perceber que o discurso que trata o ciclo completo de polícia como uma panaceia para os problemas da Segurança Pública não consegue camuflar ambições corporativistas dos policiais fardados:
O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado pelos oficiais da PM, suas associações de classe e os seus deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade irá dar ainda mais poder para o oficialato das corporações. (…) As PMs não possuem prática, não têm formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra, quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das pessoas. Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje. [20]
Vale destacar que mudança dessa natureza significaria flagrante violação ao princípio da vedação do retrocesso[21]. Como temos sustentado, a sanha utilitarista não pode servir de pretexto para que policiais fardados passem a lavrar termo circunstanciado no capô da viatura, conduzir civis para destacamentos militares, ou prender pessoas em flagrante, num retrocesso que jogaria por terra garantias que não foram conquistadas do dia para a noite. Ao amparar-se no enganoso discurso de combate à criminalidade, a Polícia Fardada, pretende promover sua hipertrofia à custa de conquistas históricas. Afinal, é um direito fundamental do cidadão ser investigado tão somente pelo delegado natural.
O alerta do Supremo Tribunal Federal vem a calhar:
É preciso advertir esses setores marginais que atuam criminosamente na periferia das corporações policiais que ninguém, absolutamente ninguém — inclusive a Polícia Militar — está acima das leis [22]
É esse, aliás, o espírito de um Estado Democrático de Direito, onde todos devem respeito à lei, não podendo se admitir que a justiça seja feita a qualquer custo, ao arrepio dos direitos e garantias individuais. Sendo assim, toda instituição policial precisa se pautar por essa premissa, afinal, a Segurança Pública é um bem jurídico basicamente instrumental, o que significa que ela não constitui um fim em si mesma, mas um meio através do qual vários outros bens jurídicos são assegurados. Sempre que a Segurança Pública ou outras expressões similares (por exemplo Segurança Nacional, Ordem Pública etc.) são colocadas em primeiro plano ou como fins e não instrumentos para assegurar outros bens jurídicos, descamba-se facilmente para o autoritarismo e a violação dos direitos fundamentais na conformação de um chamado “Estado Policial”. Nesse sentido:
Quando lemos ou ouvimos falar de segurança, pensamos imediata e erroneamente, em coação, em restrição de direitos, de liberdades e garantias. São poucos os que pensam na segurança como um direito garantístico do exercício dos demais direitos, liberdades e garantias, i. e., como direito garantia. (…). A segurança como bem jurídico coletivo ou supra – individual não pode ser vista em uma perspectiva limitativa dos demais direitos fundamentais, mas, tão só e em uma visão humanista e humanizante, como garantia da liberdade física e psicológica para usufruto pleno dos demais direitos fundamentais. [23]
Parece-nos que essa proposta de ciclo completo de polícia, nos moldes propostos pela Polícia Militar, representaria, de fato, um enorme retrocesso para o país, que se distanciaria ainda mais de um Estado que zela pelos direitos e garantias individuais, caminhando na direção contrária dos países mais desenvolvidos. Deveras, há muitas falhas na nossa Segurança Pública e a sensação de insegurança na sociedade é cada vez maior. Contudo, para que tenhamos uma mudança nesse cenário, é preciso que o tema seja discutido de maneira séria, sem qualquer tipo de corporativismo. Mais do que isso. É preciso investimento nas instituições policiais, com melhores salários e condições de trabalho.
A título de inspiração, encerramos o trabalho com o conselho de Cioran:
Amemos nossas grandes alegrias e nossos grandes desesperos, mas odiemos mortalmente a inércia, a dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que faz diminuir o ardor apaixonado da alma, como também tudo o que impeça nosso absurdo impulso na direção do mundo. [24]
1 Música do curso de formação do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, entoado em várias outras instituições militares.
2 STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007; STF, Tribunal Pleno, ADI 2427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF, Tribunal Pleno, ADI 3460, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 31/08/2006.
3 STF, RE 401243, Rel. Min. Marco Aurelio, DP 18/10/2010.
4 STF, RMS 26.546, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ 09/03/2010.
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 827; TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 406; SANTOS, Célio Jacinto dos. In: DEZAN, Sandro Lúcio; PEREIRA, Eliomar da Silva (Org.). Investigação criminal. Curitiba: Juruá, 2013, p. 64.
6 ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JUNIOR, Salah H.. Polícia Militar não pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um no seu quadrado. Justificando.com. 07/01/2014.
7 STF, Tribunal Pleno, ADI 2.427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
8 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21.
9 Para um melhor estudo sobre o tema, indicamos o nosso SANNINI NETO, Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
10 VIANNA, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia. Revista Fórum. jan. 2013. Disponível em: < http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-a-policia>
11 MOURÃO, Janne Calhau. Só nos resta a escolha de Sofia? In: Tortura, Brasília, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010, p. 215-216; MANSO, Bruno Paes. O homem x. Uma reportagem sobre a alma do assassino em São Paulo. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 220-221/249.
12 SOUZA, Adilson Paes de. A educação em direitos humanos na Polícia Militar. 2012. 156 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
13 Advertências à militarização da ideia de segurança pública. Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. n. 206, jan. 2010. Disponível em:
14 “Ciclo completo de Polícia”: ou indevida investigação legal. Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 199, jun. 2009. Disponível em:
15 Relatório do Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, de 2012.
16 Caso Escher e Outros vs Brasil, Sentença de 06/07/2009; Caso Castillo Petruzzi e Outros vs Perú, Sentença de 30/05/1999.
17 Anistia Internacional, Informe Anual 2014/15.
18 Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Parte V. Conclusões e recomendações. p. 971
19 Resolução 8/12, que busca, dentre outras coisas, coibir a investigação de crimes comuns pelo Serviço Reservado da Polícia Militar (P2).
20ALCADIPANI, Rafael. A farsa do debate do ciclo completo de polícia In: Estadão. Out. 2015. Disponível em:
21 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 433 e ss.
22 STF, ADI 1494, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 09/04/97.
23 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 94 – 95.
24 CIORAN, Emil M. O Livro das Ilusões. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 42.
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