Há dezessete anos no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Sepúlveda Pertence é hoje o mais antigo ministro da mais alta corte do país. Nomeado pelo primeiro governo civil depois de 21 anos de regime militar, do qual foi uma das vítimas — em 1969 foi aposentado do cargo que ocupava no Ministério Público do Distrito Federal por uma junta militar —, Pertence viverá grandes mudanças em 2007. Em novembro, ele terá de se aposentar ao completar 70 anos. Citado como forte candidato ao Ministério da Justiça, nega qualquer convite. “Eu e o presidente nos damos bem. De vez em quando, nós recordamos os tempos de São Bernardo do Campo. Mas não houve convite.” Advogado experiente e um dos personagens mais importantes do Judiciário, Pertence é um velho amigo de Lula. Participou, por exemplo, da defesa do então sindicalista durante as greves em 1980,
Ex-líder estudantil, Pertence foi o primeiro procurador-geral da República nomeado depois dos 21 anos da ditadura militar, em 1985. Depois assumiu a cadeira do Supremo, em 1989, nomeado pelo então presidente José Sarney, onde presenciou os primeiros momentos de vigência da Constituição, promulgada meses antes. No começo da semana, Pertence recebeu o Correio para uma entrevista, antes de vir a público, na sexta-feira, o conteúdo de conversas telefônicas gravadas pela Polícia Federal nas quais advogados e lobistas afirmam ter comprado decisão favorável em um processo julgado pelo ministro.
Pertence negou o envolvimento e afirmou que se tratava de um caso típico de “um advogado sem escrúpulos, que diz ter comprado uma sentença que, na verdade, só poderia ter uma decisão igual a decisões anteriores do próprio tribunal”. Na entrevista, ele faz também um balanço dos últimos anos da instância máxima do Judiciário e admite que o Brasil ainda tem dificuldade de punir crimes cometidos por políticos e pela elite econômica. “O Judiciário, como um todo, vamos ser francos, ainda é pouco equipado para apurar toda a criminalidade do colarinho branco”, disse.
Leia a entrevista:
Correio — Na opinião do senhor, por que o Judiciário brasileiro ainda tem dificuldades de julgar e punir políticos?
Pertence — O foro privilegiado põe nas mãos do STF processos que não são do perfil do tribunal. São questões basicamente dependentes de apuração dos fatos contra o Executivo e o Legislativo. Então, muito destoantes da função básica do Supremo, que seria de um tribunal constitucional. O Judiciário, como um todo, vamos ser francos, ainda é pouco equipado para apurar — não é um fenômeno só brasileiro — toda criminalidade do colarinho branco. A opinião pública atribui a influências políticas, mas isso tem raízes mais profundas no tipo de criminalidade. Os crimes cometidos por assaltantes de rua e pelo homicida são, muitas vezes, improvisados. O criminoso pratica o fato e depois vai procurar como fugir do processo e da punição. A criminalidade econômica e alguns tipos de crimes políticos são delitos planejados. Na dúvida, se vão deixar rastros, não se pratica. Ou se muda a forma de praticar. Não se pode comparar. Mas eu não negaria também que há um caldo de cultura e de preconceito, ainda que inconsciente.
Correio — Então, o senhor acha que o problema estaria ligado à qualidade das investigações criminais?
Pertence — Sim. Há até uma modernização do aparelho repressivo que criou mecanismos, por exemplo, de escutas telefônicas e de perícia, mas está só começando. O nosso aparelho repressivo era feito realmente para punir a criminalidade do marginal.
Correio — O senhor fala que o tribunal não teria o perfil de julgar ações criminais. Então, o senhor é contra o foro privilegiado?
Pertence — É difícil que se mude o sistema. O que congestiona de fato o tribunal é a competência de julgar todo e qualquer crime imputado aos membros do Congresso Nacional — de furto de água à desaforo eleitoral. Muitas vezes, alcançando fatos anteriores à investidura parlamentar. Temos hoje casos que investigam se houve superfaturamento de uma obra na época em que o parlamentar foi prefeito de seu município. E há uma tendência, pelo contrário, de expandir essa competência para depois (para ex-autoridades e parlamentares). Se isso acontecer, acho que será um desastre. Aumentará o congestionamento e a competência penal, que deveria ser excepcionalíssima.
Correio — Há uma preocupação com a prescrição do mensalão. O senhor acredita que a lentidão do trâmite no STF pode fazer com que os parlamentares acabem sem julgamento?
Pertence — Suponho que não. Esperamos que haja julgamento — seja num sentido ou em outro.
Correio — O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sempre fala que nunca se combateu tanto a corrupção no país. O senhor concorda?
Pertence — É indiscutível que a investigação criminal federal e atuação do Ministério Público estão vivendo uma nova fase. Eu acho que, junto à excitação da imprensa investigativa, isso dá uma transparência brutal à corrupção ou às acusações de corrupção. Infelizmente, a dos juízes pouco vem à tona. E é muito dolorido saber que se está sendo “vendido” pelo Brasil afora.
Correio — O que o senhor quer dizer, ministro?
Pertence — Vou dar um exemplo. Uns meses atrás, numa dessas questões rotineiras (que têm entendimento consolidado no Supremo) houve um pedido de medida cautelar. O gabinete está preparado para selecionar já na entrada o que é dessa rotina. A questão foi decidida em 24 horas. Depois você vê um advogado, monitorado por outras razões pelo telefone, cobrando que tinha feito elefante voar. (Falando) que eu estava exigindo o meu. Que ele cobrasse o dele, eu não tenho nada…. Mas isso todo juiz está sujeito diariamente: de venda de fumaça. Decisões absolutamente previstas e em que é muito fácil para advogados menos escrupulosos, ou melhor, sem nenhum escrúpulo…
Correio — O senhor é do primeiro lote de ministros que entraram no STF logo depois de 1988, ano da Constituição. O que mudou na corte desde então?
Pertence — Foram anos extremamente significativos e coincidem com a vigência da constituição de outubro de 1988, que mudou totalmente a atividade inicial do Supremo. É o que se tem chamado, ora sentido positivo, ora negativo, de judicialização da política. Até a Constituição de
Correio — O senhor acha que o Supremo está prestes a viver uma nova era com a aprovação de questões da reforma do Judiciário, como a aprovação da lei que regulamenta a súmula vinculante?
Pertence — Tenho esperança que sim. Numa sociedade de massas e com essa demanda longitudinária em certas áreas da jurisdição, particularmente na área tributária, trabalhista e previdenciária, não se pode continuar a praticar o modelo processual clássico, pensado para se resolver casos absolutamente individuais e peculiares. O discurso de que a súmula vinculante vai violentar a consciência do juiz (da primeira instância) é, no mínimo, uma ilusão. Depois que se decidiu uma questão constitucional, como saldos de FGTS e piso de benefícios previdenciários, não há particularidade nenhuma a ser examinada em cada caso. O que se tem é uma questão jurídica. Acho que a súmula vinculante tem o papel que é pouco enfatizado em sua discussão: o tratamento igualitário das questões de massa, sobretudo, em relação à administração pública.
Correio — No fim do ano passado, o Judiciário viveu uma crise interna. O Conselho Nacional de Justiça foi acusado de extrapolar suas funções ao editar uma resolução que autorizava férias coletivas a magistrados. O que o senhor acha da atuação do órgão?
Pertence — Eu sou favorável à idéia de um órgão central para suprir deficiências do aparelho corregedor da Justiça. Agora isso tem de ser exercido com muita circunspecção. Mas todo poder novo é entusiasmado. Aquelas questões eram tópicas, mas o órgão tem um papel a desempenhar, sem dúvida.
Correio — O senhor foi convidado para ser vice do presidente Lula em 1998. Existe uma vontade de entrar para política, depois de ter sido um militante do movimento estudantil?
Pertence — Era uma conversa (o convite para ser vice) e que não teve conseqüência. Eu não vou lhe dizer que, como todo militante do movimento estudantil daquela época, eu não tivesse minha mosca azul. A princípio, o período militar de 64 varreu de boa parte da minha geração qualquer aspiração de carreira política. Quando se abriu (o regime), já éramos muito velhos para começar.
Correio — O senhor pensa em aceitar um eventual convite do Ministério da Justiça?
Pertence — Não sei. Esse assunto está rigorosamente proibido (risos). Eu só sei que, depois de me aposentar, quero ir a matinês.
Correio — Segundo Lula, uma das prioridades de seu governo é combater o crime organizado. O senhor acha que esse é o grande desafio para o próximo ministro da Justiça?
Pertence — É um desafio sim. Só quero que quem for escolhido tenha boas idéias. A questão não é uma responsabilidade direta do governo federal, mas, obviamente, o que se tem de prosseguir é um esforço de cooperação estreita com os estados nesse sentido.
Correio — O senhor acha que a reforma política sai no segundo mandato do presidente Lula?
Pertence — A reforma política é por definição a mais difícil das reformas na vigência de um regime democrático. Já dizia um cliente ilustre, Juscelino Kubitschek: há uma regra fundamental na política, o vitorioso não muda de método. Então, ela tem sempre que ser votada e decidida pelos vitoriosos com o método atual. Esse é o grande drama. Que se vive uma crise no sistema de representação política e partidária é evidente. Agora é esperar ver se o consenso dessa necessidade consegue superar as resistências naturais a que o vitorioso mude de método. Acho muito difícil.
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