A cena seria patética, não fosse aviltante e repulsiva. Um delegado de Polícia Federal, nas dependências da superintendência regional do órgão em Roraima, sem ser notado, aproxima-se pelas costas de uma agente federal, com a qual não tinha amizade ou intimidade, agarra seus braços e a surpreende com um beijo no rosto. A policial era lotada numa delegacia do interior do estado e se encontrava em missão em Boa Vista. O fato ocorreu em setembro do ano passado.
O delegado era o então corregedor regional da PF em Roraima, a quem compete fiscalizar o cumprimento das normas disciplinares. O fato foi testemunhado por outros três policiais federais. Alguns meses após, ele perdeu o cargo de chefe da Corregedoria.
A Agência Fenapef apurou que a policial ingressou na instituição há dois anos, é casada e atualmente trabalha em outro estado. De acordo com informações de outros policiais federais lotados à época em Roraima, não tinha sido a primeira vez que o delegado assediou a servidora. A policial já comentara com colegas sua insatisfação com as atitudes impertinentes e o comportamento “pegajoso” do delegado.
Outros servidores também relataram que, apesar de se sentir humilhada e indignada, no primeiro momento, a policial temia represálias se representasse contra o delegado. Apoiada pelo chefe da delegacia onde trabalhava, decidiu formalizar a queixa no âmbito administrativo. Ela preferiu não levar os fatos ao conhecimento do Ministério Público e ainda não decidiu se vai processar o delegado por danos morais.
No último dia 15 de março, mais de seis meses após o ocorrido, o boletim interno de serviço publicou portaria de instauração de procedimento administrativo disciplinar (PAD), por decisão do atual superintendente em Roraima, com objetivo de apurar a conduta do delegado.
De acordo com a portaria, a abordagem do delegado teria sido feita “de forma excessiva e constrangedora”, configurando possível transgressão disciplinar, por violação do inciso XI do art. 116 da Lei nº 8.112/90. Este dispositivo prevê o dever funcional do servidor público “tratar com urbanidade as pessoas” e estipula a pena de repreensão.
O enquadramento da atitude do delegado, por mais deplorável e escandalosa que tenha sido, parece contar com a benevolência de seus pares, responsáveis pela apuração. Numa hipotética situação inversa, se o acusado fosse um servidor subordinado, que tivesse agarrado e beijado, à força, uma delegada certamente responderia por transgressão bem mais grave.
O art. 132 da mesma Lei nº 8.112/90 prevê a pena de demissão para as condutas tipificadas no inciso V: “a incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição”. A transgressão, com redação similar, também está prevista no inciso VIII do art. 43 da Lei nº 4.878/65: “Praticar ato que importe em escândalo ou que concorra para comprometer a função policial”, cuja pena é de suspensão.
Se uma atitude tão indecorosa de um corregedor da PF com uma colega de trabalho, subordinada, dentro da superintendência, não é motivo para chocar a sociedade e ridicularizar a imagem o nome e a imagem da Polícia Federal, o que mais poderia ser escandaloso?
É bem provável que se o acusado fosse um agente ou escrivão, alguns delegados e corregedores vislumbrariam, no mínimo, indícios de contravenção de “importunação ofensiva ao pudor”, prevista no art. 61 da Lei de Contravenções Penais. Ou talvez dos crimes de constrangimento ilegal, desacato, abuso de poder e assédio sexual, todos previstos no Código Penal. Por muito menos, alguns infelizes já receberam voz de prisão.
Com certeza, a vontade de punir no caso do delegado não é a mesma daqueles que recentemente mandaram instaurar procedimentos disciplinares contra dirigentes sindicais, em virtude do exercício da atividade sindical ou da liberdade de expressão, inclusive com acusações cujas penas são de demissão.
A atitude corajosa da policial, em não se calar diante da conduta abusiva e desrespeitosa do superior hierárquico, infelizmente, ainda é rara na instituição. São freqüentes os relatos informais sobre casos de servidoras policiais e administrativas e também de funcionárias terceirizadas, vítimas de gracejos, constrangimentos, seduções e, em alguns casos, até ameaças de perseguição por superiores hierárquicos. Na maioria dos casos, as vitimas preferem se calar, por medo de vingança ou por falta de testemunhas.
De acordo com definição do próprio Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o assédio sexual no trabalho consiste em “constranger colegas por meio de cantadas e insinuações constantes com o objetivo de obter vantagens ou favorecimento sexual.
Uma realidade presente no ambiente machista que ainda predomina nas instituições policiais, inclusive na PF, é definida de forma didática na cartilha disponível no site do MTE: “Essa atitude pode clara ou sutil; pode ser falada ou apenas insinuada; pode ser explícita ou expressada em gestos; pode vir em forma de coação, quando alguém promete promoção para a mulher, desde que ela ceda; ou ainda em forma de chantagem”.
A Agência Fenapef entrou em contato com a policial, mas ela não quis comentar o assunto e pediu para não ser identificada. O nome do delegado também foi omitido porque ele não foi localizado para dar sua versão.
Tão chocante quanto os fatos, foi a recente publicação, também no boletim de serviço, da relação dos servidores matriculados no “Curso de Prática de Ensino Policial”, oferecido pela Academia Nacional de Polícia, realizado em fevereiro. O delegado acusado foi um dos escolhidos para se tornar instrutor. Será que vai ministrar aulas na disciplina de “ética policial”, “relações humanas” ou “direitos humanos” para os futuros policiais federais?
Fonte: Agência Fenapef
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