Compra-se a morte como se fosse muamba na capital do Brasil. Quatro feiras de importados devidamente legalizadas pelo poder público vendem remédios fabricados no Paraguai e proibidos pela Vigilância Sanitária brasileira.
Enganado: José Eudes de Medeiros, 43, sofre de gota há dez anos e há cinco é viciado em Rheumazin Forte, o remédio mais vendido nas feiras do DF
A reportagem do Correio Braziliense testemunhou durante três dias da semana passada a venda de 167 comprimidos de abortivos, de emagrecedores, de anti-reumáticos e de estimulantes sexuais. Todos paraguaios e de cinco marcas diferentes, nenhuma com registro no Brasil, e duas delas, o Cytotec e o Regental-T-TRIAC , com altas taxas de letalidade, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A Anvisa foi comunicada pelo jornal na tarde de sexta-feira passada, assombrou-se com o que viu, recebeu o mapa com o endereço das bancas, os cartões com os nomes do vendedores e ontem fez a maior blitz de medicamentos ilegais da história do Distrito Federal. Apreendeu 1.629 pílulas, prendeu cinco pessoas e confirmou o que o Correio lhe informara seis dias antes: que um mercado clandestino de medicamentos proibidos funciona nas barbas dos fiscais sanitários no DF.
Feira dos importados de Ceilândia
É um esquema parecido com o do tráfico de drogas. Os feirantes compram a mercadoria a preço de banana no Paraguai, tiram os comprimidos das caixas, driblam a fiscalização da fronteira com as cápsulas escondidas nos bolsos e trazem para vender nas principais feiras de importados do DF, a do Gama, a de Taguatinga, a de Ceilândia e a do Setor de Indústria e Abastecimento – a mais famosa delas, com dois mil quiosques, 25 mil freqüentadores por dia e a apenas 7 Km do gabinete do diretor da Anvisa, o farmacêutico paulista Victor Hugo Travassos da Rosa.
Feira dos importados do Gama
“Isso é um absurdo. Eu não sabia de nada disso. Se acontece aqui no quintal do Palácio do Planalto, imagine no resto do país”, desabafou Victor Hugo, ao examinar as capsulas obtidas pelo Correio. “Vender remédio em feira é um crime contra a vida. Remédio é droga. Pode matar se usado sem acompanhamento médico”
Os comerciantes não estão preocupados com isso. São cidadãos semi-analfabetos que fazem o papel de dublê de médicos e receitam fórmulas perigosas, como a do suposto emagrecedor Regental-T – TRIAC, caixa com 45 comprimidos, R$ 38 na Feira do Setor de Indústria e R$ 30 na Ceilândia.
“Não sei do que o Regental é feito. Sei que é bom. Minhas clientes não reclamam”, resume a mulher, de chinelo, figura tão humilde quanto seus clientes da feira da Ceilândia. Não sabe que o remédio que esconde numa caixinha de brinquedos pode ser um veneno fatal. É feito à base de tiratricol, uma substância criada para combater disfunções da tireóide e que foi proibida pela Anvisa em 2001. “Estudos americanos revelaram que o TRIAC pode provocar ataque cardíaco, acidente vascular cerebral e morte súbita”, explica o toxicologista Otávio Américo Brasil.
Tráfico do paraguai
A legislação brasileira só permite a comercialização de medicamentos em farmácias e drogarias. Algumas substâncias são tão controlados pela lei que só podem ser vendidas com retenção da receita médica ou usadas exclusivamente pelos hospitais. O uso desses remédios é regulado pela Portaria 344, da Anvisa, e quem a viola cai na lei de crimes hediondos. No caso de quem a traz do Paraguai, ainda responde pelo agravante de tráfico internacional de drogas. Isso é o que está na lei. Mas a lei das feiras do Distrito Federal é diferente.
Os feirantes escondem os medicamentos em bancas de cosméticos, de roupas indianas e principalmente de brinquedos, como as de números 266 e 268, em Taguatinga, onde a comerciante semi-analfabeta atende com sorriso a mulher grávida, que constrangida lhe pergunta se tem o abortivo Cytotec. “Aqui a gente consegue tudo, moça. Não se preocupe”, avisa, e questiona o tempo de gestação. A cliente lhe responde quatro meses, a vendedora avisa que serão precisos oito comprimidos, cada um a R$ 50. “Você tem que tomar quatro e inserir os outros quatro na vagina. Eu mesma não teria coragem de fazer. Mas já que você vai fazer, não se preocupe”, diz.
“Meu Deus isso é uma loucura. O Cytotec não mata só o feto. Pode matar também a mulher. É um medicamento perigosíssimo e que só pode ser administrado com acompanhamento médico. A paciente pode ter hipotermia, contrações intestinais terríveis e hemorragia”, avisa o experiente ginecologista Adelino Amaral, 51 anos de idade, há duas décadas no Hospital Regional da Asa Norte. “Já atendi mulheres à beira da morte. Não entro no mérito se o aborto é legal ou não no Brasil. Minha questão é médica. Cytotec vendido em feira e tomado em casa, é muito arriscado”.
A Anvisa só permite o uso hospitalar do Misoprostol, nome do princípio ativo do Cytotec. “De fato, a mucosa vaginal absorve o Cytotec. Ele é um acelerador das contrações uterinas. É muito usado nos hospitais para expulsar fetos mortos. Só os hospitais têm permissão para usar esse remédio. Ele pode deformar o neném se a mulher não conseguir abortá-lo”, avisa o médico.
A reportagem do Correio flagrou a venda de Cytotec nas feiras de Taguatinga e na banca 238 de Ceilândia, dentro de um embrulho de sapato, escondida, atrás de um altar com santinhos. Em nenhuma delas as clientes recebiam a caixa com o remédio e as bulas. “Só vendemos as pílulas. Recortamos a cartela. Já trazemos assim do Paraguai”, desculpava-se a vendedora. “O pior de tudo é que a gente acredita nessas mulheres e termina assim como eu”, lamenta José Eudes de Medeiros, 43 anos, há 10 sofrendo de gota e há cinco viciado em Rheumazin Forte, o remédio mais vendido nas feiras do DF. “Já cheguei a tomar três por dia. Sei que é um veneno.”
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