Quando em 1950 se iniciou a segunda legislatura após a redemocratização do país, um provecto e respeitável homem público, íntimo da política brasileira, fez uma previsão que poucos na época levaram a sério. “O único inevitável, em relação ao Congresso, disse ele, é que a próxima legislatura será sempre pior que a atual”. A premonição está sendo confirmada há mais de meio século. A sessão do Conselho de Ética da Câmara, realizada para ouvir, na qualidade de testemunha, o deputado e ex-ministro José Dirceu, é a melhor evidência do acerto da terrível sentença.
Se fosse vivo, o padre Antônio Vieira poderia repetir o que escreveu quando viveu no Maranhão, há mais de três séculos. Desiludido com o insucesso da defesa dos índios por ele tentada em face da conivência das autoridades encarregadas de protegê-los, extravasou sua indignação de modo mais do que cáustico: “E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida de que o M: M de Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo, M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os métodos aqui se mente”.
M tem sido a letra dos depoimentos tomados no Conselho de Ética e na CPI dos Correios. E a sessão destinada a ouvir o deputado José Dirceu não poderia ter sido diferente. Mentiu-se de todas as formas, mentiu-se por todos os meios. Mentem os depoentes, mentem as testemunhas e indistintamente, mentem acusados e acusadores. Mentem tanto a ponto de negar as próprias mentiras, de que é feita a farsa que representam ante um país atônito, ante tantas mentiras. A sessão em si já era uma farsa. Na verdade, não se sabe qual a maior, se a que representou o denunciado Roberto Jefferson, desde que assumiu o papel de Inspetor geral, da comédia de Nicolai Gogol, ou a que protagonizou o ex-ministro, na menos conhecida, mas não menos importante narrativa de Dostoiévski, O inocente.
Farsa, ensina mestre Aurélio, é a “peça teatral de comicidade exagerada, ação vivaz, irreverente e burlesca, e com elementos de comédia de costumes”. É, também, “baixa comédia, ato ridículo, coisa burlesca, embuste, logro, pantomima”. E que ridículo maior poderia protagonizar o personagem que, ante a incredulidade geral, refutou a conhecida acusação de ser arrogante quando ministro, alegando ter nascido inocente e inocente e humilde ter se mantido ao longo de toda a vida, a ponto de saber estar sendo acusado, pelo papel que tem desempenhado na história do país? Por um momento, a platéia se divertiu e mais divertido tornou-se o espetáculo, desde que personagens, secundários e mal adestrados, pensam estar encenando uma epopéia, enquanto o país assiste à tragédia da decadência com que estamos sendo obrigados a conviver, por força da falta de talento que tomou conta da vida pública brasileira.
Os personagens, mais uma vez, se esforçaram para bem cumprir o seu papel. Mas, lamentavelmente, é o diretor do espetáculo quem dá o tom da peça. E, com presunção ainda maior que a dos atores que escolheu, vive a repetir a cantilena que o destino, como castigo, nos reservou, pela imprevidência de tê-lo escolhido para dirigir o que, prometendo ser o maior espetáculo da Terra, transformou-se, por força dos fados, num teatro de mamulengos. Desiludido por seu retumbante fracasso, o diretor, em momentos de bom senso, tem confessado que o “Brasil merece coisa melhor”. E dessa vez, pelo menos, tem toda razão.
A sentença, terrível mas verdadeira, do provecto conhecedor de nossa vida pública que há meio século prognosticou a maldição com a qual o Congresso teria que conviver tem sido um estigma. Não para a instituição, sem a qual a democracia não pode viver, mas para nós mesmos, que elegemos seus integrantes e, como filhos de Eva, estamos condenados a viver no paraíso que não escolhemos. O problema é que, a cada quatro anos, voltamos ao mesmo teatro, com os mesmos personagens, na esperança de que diretor e elencos sejam melhores. O preço do espetáculo aumenta sempre, a qualidade não se aprimora e mais uma vez nos decepcionamos. O nosso drama é que esta semana tem mais e na próxima também. O enredo é o mesmo, e a farsa também. O que nos consola é palhaço, que todos os dias, parece nos advertir, como há séculos, perguntando e respondendo ao mesmo tempo: “Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor! E o palhaço o que é? É ladrão de mulher!”
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