Anuário Brasileiro de Segurança Pública assinala que, em 2018, 104 policiais suicidaram, número maior do que os 87 mortos em expediente
No fim de agosto, números de uma pesquisa divulgada pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp), criado pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ) e pela Polícia Militar fluminense, deixaram evidente uma situação alarmante: no Brasil, quem tem a função de proteger está cada vez mais vulnerável diante de um mal que mata uma pessoa no mundo a cada 40 segundos.
De acordo com o estudo, em 2018 foram registrados 53 suicídios de profissionais de segurança pública (das polícias Civil, Militar, Federal e Rodoviária Federal e do Corpo de Bombeiros) em 18 estados e no Distrito Federal, mais que o dobro do verificado em 2017 (25 mortes).
Além disso, foram contabilizados 14 tentativas (no ano retrasado, haviam sido seis) e 14 homicídios seguidos de suicídio – situação em que o policial mata alguém (geralmente familiares) antes de tirar a própria vida.
Segundo a 13ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado na quarta-feira passada, (11), os números são ainda mais alarmantes. Em 2018, 104 policiais cometeram suicídio – número maior do que o de policiais mortos durante o horário de trabalho (87 casos) em confronto com o crime.
São Paulo, que tem o maior efetivo de segurança pública do Brasil, teve 11 suicídios, três tentativas e quatro homicídios seguidos de suicídio.
No Paraná, foram dois suicídios – em um deles, o policial assassinou outra pessoa antes de se matar.
Entidades de classe e profissionais de saúde lamentam a falta de políticas específicas para esse público, mas aos poucos estão surgindo iniciativas que miram a correção dessa falha.
“Há uma sensação de onipotência que a sociedade coloca sobre o policial e ele acaba incorporando, acha que não pode mostrar fraqueza. Existe um tabu, a pessoa acha que falar é sinal de fragilidade, se fecha demais e não busca ajuda. Enfatizamos a necessidade da participação da família, que pode perceber a angústia, o isolamento, identificar esses sinais.” Raphael Di Lascio, coordenador do Departamento de Psicologia da Universidade Positivo.
Em Alagoas, a Polícia Militar implantou em 2017 um programa para a prevenção do suicídio após uma pesquisa apontar uma taxa de ocorrências dentro da corporação superior à da população em geral.
Segundo a capitã Larissa Paes de Omena Soares, psicóloga do Centro de Assistência Social da PM alagoana e coordenadora do projeto, a prevenção é feita em três eixos.
O primeiro é chamado de universal: direcionado ao público geral de policiais militares e famílias, consiste de palestras sobre o assunto e visitas a unidades durante todo o ano, além da capacitação de profissionais de saúde que atendem a corporação.
O segundo é a prevenção seletiva, na qual são contemplados públicos em situação de risco: dependentes químicos, policiais que passaram recentemente por ocorrências traumáticas e afastados por questões de saúde mental.
“Fazemos a orientação para que os comandantes nos encaminhem quem esteja nessas situações”, descreve a capitã Soares.
“O terceiro eixo é a prevenção indicada, em que atendemos pessoas que já apresentaram comportamentos relacionados, como as que já tentaram suicídio.”
O projeto também faz a chamada posvenção, a assistência a familiares e colegas quando um policial tira a própria vida.
“O que ocorre é que falar sobre suicídio continua sendo um tabu. Muitos ainda acham que tocar no assunto é incentivar o suicídio. Mas hoje há a certeza de que é preciso falar, sim. Temos que ouvir a pessoa, aceitá-la como ela é, sem preconceitos nem julgamentos”, diz Iracema Perin, voluntária e uma das porta-vozes do CVV em Curitiba.
A PM de Alagoas está refazendo o estudo que embasou o lançamento do projeto, para avaliar os resultados, e os dados devem ser divulgados no final de setembro.
“O que se sabe é que nos últimos três, quatro anos, está acontecendo um aumento geral do número de suicídios na população, principalmente entre os jovens. Esse estudo vai nos permitir avaliar e definir novas estratégias de prevenção”, explica a coordenadora.
A Polícia Civil do Paraná está implementando, em parceria com o Departamento de Psicologia da Universidade Positivo, um projeto para expandir o atendimento em saúde mental na corporação, no qual a prevenção do suicídio será uma das prioridades.
Luciana de Novaes, coordenadora do Grupo Auxiliar de Recursos Humanos (GARH) da Polícia Civil, conta que o projeto será a evolução do trabalho do Centro de Psicologia Jurídica e Atendimento Multiprofissional (CPJAM), que abrange Curitiba e região, e de clínicas e entidades parceiras que prestam o mesmo atendimento para policiais do interior.
“O que acontece hoje é que o delegado ou chefe de setor detecta o que está de errado com o policial e faz o encaminhamento. A ideia é fazer um diagnóstico de toda a Polícia Civil do Paraná e estabelecer um protocolo para todo o Estado, para que tudo seja feito de forma mais sistemática”, explica a delegada.
No fim de setembro, será realizado um evento na Escola Superior da Polícia Civil em que serão selecionados policiais cuidadores, que terão a incumbência de fazer o acolhimento de quem necessita de ajuda. “Eles vão detectar sinais e inserir os colegas no sistema de atendimento psicológico do Estado”, aponta Novaes.
Segundo Raphael Di Lascio, coordenador do Departamento de Psicologia da Universidade Positivo, serão traçadas estratégias conforme o diagnóstico das principais demandas em atendimento por região.
O trabalho da rede de apoio será complementado por cartilhas de orientação, comunicação direta com as famílias, palestras e rodas de conversa.
“Há uma sensação de onipotência que a sociedade coloca sobre o policial e ele acaba incorporando, acha que não pode mostrar fraqueza. Existe um tabu, a pessoa acha que falar é sinal de fragilidade, se fecha demais e não busca ajuda. Enfatizamos a necessidade da participação da família, que pode perceber a angústia, o isolamento, identificar esses sinais”, relata Di Lascio, que elenca depressão, ansiedade e crises de pânico como resultados rotineiros.
No início de agosto, a morte de um delegado de Apucarana (Norte do Paraná) gerou comoção na Polícia Civil paranaense.
“A profissão de policial é extremamente complicada. Tudo é confidencial, não pode falar nada sobre uma investigação para a família, os amigos, faz parte da função. O sono é afetado também. A profissão traz coisas que obrigam a desenvolver uma resiliência para lidar com a pressão, mas para quem não consegue há uma dificuldade muito grande”, alerta o professor.
De volta à rotina
Iniciativas para prevenir suicídios entre policiais não partem apenas do Estado: entidades representativas também se mobilizam para evitar novos casos.
Há sete anos, o Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal (Sindipol-DF) criou uma clínica própria, que hoje tem duas psicólogas que atendem 46 policiais e dependentes. “A ideia surgiu quando vimos o alto índice de suicídios entre policiais federais”, afirma Egídio Araújo, presidente do Sindipol-DF.
“Percebemos uma deficiência grande na prestação desse serviço pelo estado. Nunca houve políticas públicas para esse tipo de assistência, embora na gestão atual (da PF) haja uma preocupação maior.”
Segundo o sindicato, nos últimos 20 anos 48 policiais federais se suicidaram em todo o Brasil; também foram registradas sete tentativas.
“O que a gente percebe é que, quando as doenças da mente são tratadas no início, o resultado é positivo. O paciente bem tratado e bem assistido recupera a qualidade de vida. Já tivemos muitos casos de colegas que chegaram a ter a arma recolhida e, depois de serem atendidos, voltaram às suas atividades na PF normalmente”, descreve Araújo.
No Rio Grande do Sul, a Associação dos Oficiais da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros (ASOFBM) lançou recentemente uma cartilha para prevenção do suicídio, com orientações sobre como detectar sinais de intenção suicida e procurar ajuda.
“O Rio Grande do Sul tem quase o dobro do índice de suicídios do Brasil, e na Brigada Militar é o dobro do índice do estado. Morrem mais brigadistas assim do que em confrontos”, relata o coronel da reserva Marcos Paulo Beck, presidente da entidade.
Segundo a ASOFBM, entre 2008 e 2018 foram registrados 50 suicídios de brigadistas e bombeiros gaúchos.
Beck cita baixos salários, pressões decorrentes da expansão do crime organizado e da falta de efetivo, carência de assistência psicológica e a desvalorização da profissão como males que comprometem a saúde mental de policiais em todo o Brasil.
“O soldado não tem só o bandido como inimigo. A sociedade só se lembra da polícia quando está em perigo. Quando tem batida policial, o cidadão não gosta de ser parado. Mas quando roubam o carro dele, aí ele quer saber da polícia”, lamenta o coronel.
A associação busca recursos para distribuir a cartilha nacionalmente. “Não queremos que fique restrita à Brigada Militar, queremos que seja distribuída para toda a sociedade e que seja levada para as polícias dos outros estados”, diz Beck.
Um tabu a ser vencido
O Setembro Amarelo foi criado no Brasil em 2015, uma parceria do Centro de Valorização da Vida (CVV) com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com o objetivo de reunir ações para chamar atenção para o tema durante o mês em que se comemora o Dia Internacional de Prevenção ao Suicídio (10 de setembro).
“Não temos estatísticas porque fazemos um trabalho totalmente sigiloso. A pessoa que entra em contato com o CVV (pelo telefone 188, e-mail, chat ou presencialmente) não é obrigada a se identificar. Mas o que as pesquisas destacam é que o policial tem acesso à arma de fogo, perde muitos colegas em confrontos e vivencia diariamente a exposição a situações de violência. Isso tudo e o estresse da profissão contribuem. É uma situação preocupante”, aponta Iracema Perin, voluntária e uma das porta-vozes do CVV em Curitiba.
“Nós precisamos de políticas públicas para essa população. Começa a haver uma preocupação maior, com seminários, o CVV tem recebido muitos convites para fazer palestras em unidades (policiais), no Corpo de Bombeiros. O que ocorre é que falar sobre suicídio continua sendo um tabu. Muitos ainda acham que tocar no assunto é incentivar o suicídio. Mas hoje há a certeza de que é preciso falar, sim. Temos que ouvir a pessoa, aceitá-la como ela é, sem preconceitos nem julgamentos”, afirma.
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