Fonte: O Estado de S. Paulo
No afã de “mostrar serviço” diante da onda de vandalismo nas manifestações no Rio de Janeiro, que tem lhe custado popularidade e ameaçado seus projetos políticos, o governador Sérgio Cabral enveredou perigosamente no terreno do autoritarismo, usando recursos típicos de estado de exceção.
Cabral baixou um decreto para criar uma “Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas”. O nome, em si, denota deslavado oportunismo, já que o vandalismo, por constituir atividade criminosa, deve sempre ser investigado.
Como até os Arcos da Lapa sabem, a criação desse grupo faz parte da estratégia do governador de dar uma resposta rápida às demandas de eleitores por atitudes mais duras depois dos quebra-quebras no Leblon, área nobre da cidade do Rio. Mas, tal como foi redigido, o decreto que estabeleceu a comissão abriria a possibilidade de, a pretexto de defender e preservar a ordem pública, atropelar direitos e garantias fundamentais.
Em seu artigo 2°, o decreto de Cabral diz que caberia à comissão “tomar todas as providências necessárias à realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas”.
Tomado ao pé da letra, o texto permite supor que a tal comissão, formada pelo Executivo fluminense, teria poder de investigação criminal, algo que a Constituição reserva exclusivamente à polícia judiciária.
Além disso, a redação do artigo é dúbia o suficiente para dar margem a interpretações autoritárias. E o caso de perguntar o que quer dizer exatamente “tomar todas as providências necessárias” e “praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais”. A comissão poderá decretar a prisão de suspeitos? Poderá conduzir interrogatórios? Como nada disso ficou muito claro, o espaço para a arbitrariedade seria grande.
O artigo do decreto de Cabral que gerou maior controvérsia, no entanto, foi o 3º, que diz que as demandas feitas pela comissão “a todos os órgãos públicos e privados” do Rio “terão prioridade absoluta em relação a quaisquer outras atividades da sua competência ou atribuição” – e o parágrafo único declara que “as empresas operadoras de telefonia e provedores de internet terão prazo máximo de 24 horas para atendimento dos pedidos de informações” da comissão.
Trata-se de um atentado à democracia e ao Estado de Direito. Sem-cerimônia, Cabral decretou a suspensão, no Rio de Janeiro, da garantia constitucional do sigilo telefônico, bancário e de correspondência, algo que só poderia ser feito mediante mandado judicial para casos específicos e bem fundamentados. Com razão, as empresas telefônicas e de internet, por meio de seu sindicato, disseram-se impossibilitadas de cumprir a determinação do governador.
Além disso, de acordo com o decreto, o governo se imiscuiria em assuntos de caráter privado, ao estabelecer qual a “prioridade absoluta” de empresas particulares, e privilegiaria a investigação de casos de vandalismo em detrimento de crimes muito mais graves, como assassinatos e estupros.
Diante da repercussão negativa, Cabral recuou e mandou mudar a redação do decreto, para, segundo ele, deixar claro que a comissão “não substitui o papel da Justiça”. Diante da série de disparates impressos no Diário Oficial, Cabral faria bem se revogasse o decreto.
Não há dúvida de que a necessária repressão à violência em meio às legítimas manifestações dos cidadãos tem constituído um grande dilema para o Estado. O despreparo dá polícia ficou evidente em alguns casos, e as autoridades, afeitas ao populismo, mostraram-se hesitantes em mandar cumprir a lei. No entanto, arroubos autoritários como o de Cabral não ajudam. Ao contrário: mostram que a atual crise não encontrou governantes à altura dos desafios.
Comments are closed.