O inquérito policial não funciona. Pouquíssimos são instaurados e os que são costumam dar em nada. Trata-se, na verdade, de um conjunto de papéis que ficam passando entre diversos profissionais ligados à investigação policial. Em última análise, servem como forma de repasse de informações de segunda mão entre diversos setores da polícia.
É o que afirma o policial federal Luís Antônio Boudens, presidente da Federação Nacional de Policiais Federais (Fenapef), órgão sindical que representa todas as classes de agentes federais, em entrevista à revista Consultor Jurídico. Ele baseia sua argumentação em estudo publicado em 2010 sobre o inquérito policial no Brasil, coordenado pelo professor Michel Misse, da UFRJ.
Um dos principais problemas encontrados pela pesquisa é o fato de o Brasil ter duas polícias — a Polícia Militar, para prevenção, e a Polícia Civil, para investigação — e elas não se relacionarem. Ou seja, a prevenção não fala com a investigação, e vice-versa. Mais grave ainda, diz a pesquisa, é que, com a falência do inquérito, a realidade é que os crimes que apresentam as melhores taxas de elucidação são os que resultam de flagrante.
“Mostra-se, em geral, muito baixa a capacidade de elucidação de crimes graves, como o roubo e o homicídio, como também o é a de produção de provas periciais em homicídios, um tipo de crime com alto grau de elucidação nos países modernos”, diz a pesquisa. À ConJur, Boudens conta que o índice de soluções em homicídios no Brasil é de 4%.
Quem acompanha o noticiário político, certamente dirá que o combate à corrupção aumentou, e o grau de elucidação de crimes vem aumentando. Boudens os corrige. Segundo o presidente da Fenapef, as operações não são parâmetro, porque elas têm um trâmite diferente dos inquéritos normais, além de contar com aproximação total com o Ministério Público.
A realidade dos crimes citados pela pesquisa, como homicídio, latrocínio, roubo etc. é bem diferente. “Isso simplesmente não é investigado”, lamenta Boudens. “Essas coisas estão caindo na banalidade.”
Leia a entrevista:
ConJur — Recentemente a Fenapef publicou um grande estudo sobre o inquérito policial no Brasil. O que se concluiu ali?
Luis Boudens — O inquérito policial é o símbolo da falência das nossas investigações, tanto na sua forma de início quanto na sua condução.
ConJur — Mas há tanto alarde sobre o trabalho da Polícia Federal, pelo menos no que diz respeito a investigações sobre corrupção.
Luis Boudens — A PF é uma polícia de sucesso nessas operações, mas elas não são parâmetro. Nelas, toda a formatação da investigação muda. A polícia se aproxima do Ministério Público, o trabalho dos investigadores é imediatamente conhecido pelos procuradores e pelo Judiciário, o que já mina a burocracia. As operações mudam completamente a dinâmica da investigação. Não têm aquele trâmite normal de delegacia.
ConJur — Qual é a realidade dos crimes como homicídio, roubo, latrocínio, tráfico de armas?
Luis Boudens — Isso simplesmente não é investigado. Não há ordem de prioridades, e crimes considerados menores, de descaminho, contrabando, essas coisas, estão caindo na banalidade. A ponto de o Ministério Público estabelecer valores de objetos apreendidos para dar prosseguimento à persecução penal. Há uma clara seletividade.
ConJur — Mas essa seletividade não dá mais eficiência às investigações?
Luis Boudens — A seletividade é inimiga da investigação criminal. Por exemplo, se pegar essa orientação pra outros crimes, falso testemunho, falsificação de documento, depois ela passa pra crimes previdenciários, fazendários, moeda falsa etc. Isso tudo está num lote enorme, que é a maior parte das investigações, e não têm solução nenhuma. Os crimes de conduta, de falsificação, por exemplo, estão num patamar muito baixo de importância. Não chegam a 2% de soluções.
ConJur — O que se considera solução?
Luis Boudens — A conversão das investigações, por meio dos relatórios de investigação, que são os inquéritos, em denúncia pelo Ministério Público.
ConJur — E qual é o índice de conversões em denúncia?
Luis Boudens — Usando a Lei de Acesso a Informação, descobrimos que o índice de solução de crimes pela PF é de 4%. Menor que os 8% que costumavam ser divulgados. E aí nos preocupamos, porque os nossos inquéritos têm uma avaliação qualitativa boa, mas a avaliação quantitativa estava igual ou pior às políciais civis dos estados. O que fizemos, então, foi usar da ciência disponível para descobrir os motivos desse quadro.
ConJur — Por que usaram a Lei de Acesso?
Luis Boudens — Porque esses dados estavam sendo escondidos. Sempre foi dito que o índice de resolução era de 8%, mas quando pedimos os dados para conferir, o governo nos negou acesso. O motivo de a gestão esconder os dados reais é óbvio: quer se manter a PF como uma polícia de sucesso, mas essas operações não são parâmetro.
ConJur — O senhor disse que as operações não podem ser parâmetro para analisar a eficiência das investigações porque elas não obedecem ao trâmite normal das delegacias. Como é esse trâmite normal?
Luis Boudens — Nossa pesquisa fala muito bem disso. Os investigadores fazem relatórios, enviam ao delegado, espera o delegado despachar, o escrivão autuar, e aí volta para o delegado. E aí vem a questão das pilhas de inquéritos que a pesquisa fala. Nas polícias civis, principalmente, logo que a notícia crime chega para a delegacia, ela vai para uma pilha de boletins de ocorrência, de flagrantes, todos de outros órgãos ou da própria Polícia Civil, ou Federal. Aqui ela passa por uma análise, de um delegado, que vai decidir instaurar o inquérito ou não. Quando ele decide instaurar o inquérito, começa a formar outra pilha, que é a das investigações que já têm um inquérito formal, e aí começa a correr prazo.
ConJur — Ou seja: vários gargalos só até instaurar o inquérito.
Luis Boudens — Vários gargalos. O primeiro gargalo, e o principal, é que temos duas polícias nos estados, a militar e a civil. Quem vai ao local do crime atender a ocorrência, ouvir as primeiras testemunhas, e conhecer o local é a PM. Só que ela não pode investigar, então para ali. Aí ela faz um relato através do boletim de ocorrência e depois todo esse material é enviado para a Polícia Civil, e aí começam outro gargalos. O primeiro gargalo é a impossibilidade de a PM sequer fazer o cruzamento de informações, analisar os crimes em um bairro, quem já foi preso, quem já foi condenado etc. A PM vai ter que se desdobrar para conhecer a criminalidade da região, e em alguns estados ela já tem feito o mapeamento por manchas criminais, mas tudo voltado para a área de prevenção.
ConJur — E na Polícia Civil, mais burocracia.
Luis Boudens — Quando chega na Polícia Civil, já tem o primeiro gargalo, que é a seletividade do delegado. Ele vai ter que escolher o que vai virar inquérito policial ou não, o que vai ser útil etc. Um bom exemplo é o crime de moeda falsa. Fizemos um levantamento em Minas Gerais e vimos que uma média de quatro de cada 200 ocorrências de moeda falsa vindas da PM tinham possibilidade de prosseguir em investigações. A possibilidade de uma ocorrência virar uma investigação é de 2%. Quer dizer, o crime de moeda falsa no Brasil praticamente não é investigado. E é um crime dificílimo de investigar, é muito peculiar, porque o despejo de notas é feito em notas individuais, e a pessoa que pega uma nota falsa quer se livrar do prejuízo. Mas se ela repassar essa nota, em tese ela cometeu um crime. Então, o que é feito no Brasil é se registrar um boletim de ocorrência para cada nota encontrada.
ConJur — Mas esse é um crime em tese menos preocupante, não?
Luis Boudens — É apenas um exemplo. A investigação de homicídio é outra sequência de gargalos. Em qualquer lugar do mundo, acontece um homicídio e já são designados policiais para investigar. No Brasil, não. Chega a PM, faz um boletim de ocorrência, isola o local, preserva a cena do crime, e espera a chegada de um perito. Ele chega, toma as informações e faz um laudo. Isso pode demorar 30 dias, a depender da complexidade do crime. Veja como começa uma investigação criminal no Brasil: um papel e depois outro papel. E isso aí vai para a mesa de um delegado. Não vai um investigador para a cena do crime em nenhum momento. Se o criminoso for ligado ao tráfico de drogas, por exemplo, e isso não constar do boletim de ocorrência, nunca vai ser investigado. Esse é o primeiro gargalo das investigações de homicídio.
ConJur — Isso quando os crimes são investigados.
Luis Boudens — Mas pense num boletim de ocorrência sobre um homicídio chegando a uma delegacia sem informações. Numa escala de prioridades, a delegacia atolada de trabalho, quando aquele crime vai ser investigado? Jamais. Este é o primeiro grande gargalo da investigação de homicídio: não distinguir por vítima ou autor. É considerar normal aquele pacote de papel.
ConJur — Qual a solução?
Luis Boudens — Modificar o relatório policial. Desde a cena do crime até o primeiro registro daquele crime, já tem que ter um documento inicial de investigadores, dizendo as informações básicas: o crime ocorreu tal hora, a vítima é essa, entrevistamos tais pessoas que são possíveis testemunhas para a fase judicial etc. Já são apontamentos do investigador. No Brasil não existe isso. Tudo vai para a mão de um delegado, que é um profissional formado em Direito, muitas vezes sem o conhecimento multidisciplinar necessário para avaliar uma cena de crime. E que não vai até a cena do crime.
ConJur — Então hoje o quadro é de um monte de informação de segunda mão sendo repassada.
Luis Boudens — Exatamente. É a parte processualista, de rito, superando a parte objetiva, de investigação. E isso acontece no Brasil desde 1831, quando veio essa primeira formatação do inquérito, e não conseguiu se desvencilhar dela. Portanto, se de um lado temos uma investigação falha, de outro temos, nos estados, duas polícias separadas que não se comunicam.
ConJur — Há muita gente em funções só burocráticas também, não?
Luis Boudens — Se pegasse hoje todos os escrivãos do Brasil que trabalham na parte burocrática cartorial, mas que recebem o mesmo treinamento e passam no mesmo concurso que os agentes investigadores, imagina o ganho em qualidade da investigação. São profissionais com a mesma formação, a mesma escolaridade que os agentes, mas destinados a funções simples, digitar, controlar de prazos. Esse é outro gargalo. Na PF, por exemplo, são 6,5 mil agentes e 1,7 mil escrivãos. Olha o salto que ia dar se coloca esses 1,7 mil em campo pra investigar. Essa é outra de nossas propostas, de acabar com a burocracia do escrivão. A parte cartorial tem de ter a importância diminuída, porque ela gasta pessoal e ainda obriga a estender o tempo das investigações.
ConJur — Como assim?
Luis Boudens — É mais uma etapa que tem que existir, porque existe uma pessoa dedicada somente a ela. E falo isso na parte já formalizada, do inquérito. Nem falei ainda daquela pilha que ainda não se transformou em inquérito de investigação formal, que é a enorme maioria. Nos casos de homicídio, nos casos de repercussão na imprensa, nos casos que precisa de cautelar, aí tem que instaurar o inquérito logo. Mas quando não é obrigado, fica na pilha empoeirada das delegacias.
ConJur — Qual seria a solução para as questões cartoriais?
Luis Boudens — O uso da oralidade. Nossa proposta é que uma equipe de dois ou três agentes (nunca é bom ir um só, para fins de correção) gravar os depoimentos e depois fazer seus relatórios. Aqueles que tiverem validade jurídica para integrar o corpo de provas vão ser transformados em provas pelo juízo. É simples. No mundo inteiro é assim. Nos Estados Unidos, eles gravam os depoimentos e na fase judicial o promotor intima as pessoas que forem úteis pro caso a depor como testemunha.
ConJur — Como funciona hoje?
Luis Boudens — Olha o absurdo que é no Brasil: por mais simples que seja o crime, se ele acontece numa cidade que fica a 400 km de uma delegacia, a testemunha deve ir a essa delegacia prestar depoimento. E aí vêm as questões de ordem prática: ela tem dinheiro para ir à delegacia? Quando ela vai poder ir? Se ela não puder, vai ter de ir uma equipe até ela tomar esse depoimento, isso tudo às custas do dinheiro do cidadão e do tempo do Estado. Chegando lá, ela fala, o escrivão tem que reduzir o depoimento a termo, naquela linguagem ridícula e burocrática que ninguém gosta de ler.
ConJur — E aí ninguém vai a uma delegacia denunciar um crime.
Luis Boudens — Você acha que um carioca que teve o celular roubado no Centro vai a uma delegacia prestar queixa sabendo o que o espera? Ele não vai buscar justiça numa delegacia, porque ela simplesmente não vai vir. E aí ele olha para os 4% de homicídios investigados e começa a pensar se não vale mais a pena pensar numa vingança própria, ou ir pra igreja rezar pela justiça divina. A justiça do Estado não vai vir. É triste essa constatação.
ConJur — Dá pra resolver?
Luis Boudens — Nós defendemos a inserção e a valorização do investigador, tenha ele qualquer denominação — agente, detetive, delegado. O fato é que precisamos de uma equipe de investigadores nos locais de crime, fazendo este levantamento in loco e trocando melhor informações com a sociedade. Ao mesmo tempo em que as etapas da investigação se tornam úteis, é estabelecido uma nova relação da polícia com a sociedade. Cria uma relação de confiança, de confidência, entre investigadores e sociedade. Um vínculo que hoje não existe.
ConJur — A investigação policial hoje está viciada em certas práticas? Pelo menos pelo que é noticiado, vemos que toda apuração tem quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal, de e-mail, grampo etc. Isso virou uma muleta para a polícia?
Luis Boudens — Esse ponto é fundamental. O habitual, ou normal, é ter investigadores em campo, coletando informações e fazendo relatórios. Quando a forma habitual é inviável, a polícia parte para outros meios. É o que a lei diz. Como não tem estrutura humana adequada, o que eu faço? Vou usar o método mais fácil pra mim e no qual me arrisco menos, que é mais cômodo. São métodos um pouco mais eficientes, gastam menos pessoal e menos verbas. Portanto, por que vou colocar gente na rua, com radiocomunicadores, com viaturas gastando combustível, vou gastar com manutenção mensal? Se eu posso usar esses mecanismos, que com um mínimo de gastos, conseguem produzir mais resultado? São uma forma de conseguir mais provas com menos recursos. É um ciclo vicioso.
ConJur — A pesquisa descobriu que o índice de solução de investigações é de 4%. O que acontece com os 96% que não são solucionados?
Luis Boudens — Há um problema metodológico aí. Por incrível que pareça, tem inquéritos na PF de dez anos, então o recorte do tempo também é muito importante. Se a gente pega um período de cinco anos, vai dizer lá que esse inquérito de dez anos não se mexeu, nem sobre autoria e nem sobre materialidade. E tem inquéritos que são concluídos sem um dos dois, autoria ou materialidade. Por isso os delegados usam esse método de inquérito instaurado e inquérito relatado, e o tempo de duração como medida de produtividade da polícia. Mas esse dado é enganoso.
ConJur — Por quê?
Luis Boudens — Porque você pode instaurar um inquérito de moeda falsa, por exemplo, de manhã e relatar à noite. Durou um dia, um recorde de investigação. E se você faz um recorte de cinco anos e tem inquéritos com mais que cinco anos, esse bolo todo vai entrar no pacote da ineficiência. É diferente de pegar, por exemplo, durante aquele ano, quantos inquéritos de homicídio foram concluídos no Rio de Janeiro, em Recife, em Belo Horizonte, Fortaleza etc.
ConJur — Quer dizer: dá pra se esconder atrás de estatísticas.
Luis Boudens — É exatamente isso que a gente está tentando evitar. O atual ministro da Justiça, quando assumiu, anunciou que ia tentar melhorar essas questões, principalmente porque o TCU deu um prazo de 60 dias para o governo apresentar uma proposta de solução imediata para a criminalidade. Juntando esses diagnósticos, a determinação do TCU e a fala do ministro, dá pra ficar esperançoso.
ConJur — Mas nada disso deu em nada.
Luis Boudens — Não resultou em nada. Quando fomos até o ministro, veio o discurso padrão: “Temos que aumentar os investimentos, comprar equipamentos, fazer concurso, melhorar as viaturas”, o que já foi feito várias vezes. Portanto, vai gastar dinheiro público durante um período, criar a ilusão de que se está fazendo alguma coisa, combatendo o crime, para tudo voltar ao normal no momento seguinte.
Fonte: ConJur
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