“O mal maior que alguém pode fazer a si mesmo é quando atenta contra a própria vida.”
“O suicídio ocorre quando a estrutura mental do sujeito desconecta-se da realidade, o mundo já lhe parece não oferecer nenhuma opção e a melhor saída em sua óptica distorcida é extinguir com a própria vida.”
Mais uma vez, estamos lamentando o desfecho dramático da perda de uma vida, fruto do descaso, do abandono e da omissão.
Nesse momento angustiante, cabe-nos apenas sermos silenciosamente solidários à imensa dor daqueles entes queridos, cujo consolo não pode ser alcançado por palavras, senão talvez, apenas pelo nosso ombro amigo.
Compreendo a revolta dos colegas mais próximos, os amigos, pois sem dúvidas justificam-se os seus brados, já que de há muito clamamos por uma ação que atenue situações de descaso e abandono em que muitas vezes encontram-se nossos colegas.
Esse não foi o primeiro ato de atentado contra a própria vida dentro do DPF e certamente não será o último, se nada for feito.
Se cabe ao indivíduo a responsabilidade pelos seus atos, não devemos esquecer que cabe também à Administração (de tão “excelentes gestores”) responsabilidade pelo não cuidar, pelo não fazer.
Independente da gravidade do processo pelo qual esse colega vinha sofrendo – os rigores da ação de um processo disciplinar -, além da própria convicção dos que nele encontraram culpa, não poderíamos jamais ter esquecido que ali encontrava-se um ser humano, como todos nós, que certamente tinha virtudes e poderia em algum momento ter cometido falhas.
É aí que peca a instituição como um todo, porque não resguarda o que é seu, não protege seu mais precioso bem (caríssimo para a União/contribuintes), seu funcionário, servidor dos interesses da Nação, por quem deveria zelar em sua integridade física, mental, emocional e, porque não dizer, até mesmo espiritual.
Entendo a revolta do Fábio e do Dias, ambos nobres colegas com quem tive o prazer de conviver, e posso atestar a dignidade e o interesse no zelo pelo nome da instituição Polícia Federal e de seus integrantes. Com toda certeza, eles têm razão, de vez que não importa, na minha ótica, se temos mais ou menos atos contra a própria vida no DPF hoje do que tínhamos há alguns anos. O que realmente deve importar é que deveríamos, já há muito tempo, estarmos oferecendo recursos que pudessem produzir, senão a extinção de tal situação, pelo menos a consciência tranqüila de que toda assistência foi oferecida ao servidor.
O DPF é hábil em punir e em prejulgar. Entretanto, foi incapaz ao longo de toda sua existência de desenvolver um mecanismo que proteja o indivíduo, que lhe garanta o equilíbrio emocional, que fortaleça suas convicções morais e legais, de forma a afastá-lo da tênue linha que separa a legalidade da ilegalidade.
Como de tantas outras vezes, essa morte também cairá no esquecimento, exceto para aqueles que realmente a sentirão pelo resto de suas vidas, os familiares. Os demais, mesmo os colegas, em breve retornarão à rotina. A administração dirá que foi uma fatalidade, fato isolado, que nada teve a ver com os atos por ela adotados etc. Por fim, tudo parecerá ter voltado ao normal, até a próxima vítima.
Não basta, a meu ver, bradarmos contra a Administração, sindicato etc., movidos apenas pelo momento da emoção exaltada. Tenho convicção que o nosso sindicato não deixou de prestar o apoio devido à família do colega, mesmo que não tenha sido da forma como um ou outro desejasse.
Precisamos, sim, é nos unir. Necessitamos utilizar nossas lideranças para organizar um movimento em defesa da humanização do servidor da Polícia Federal, que conte com a participação da Fenapef e sindicatos, em nível nacional. Se somos capazes de fazer greve e paralisações por salário e carreira, por que não temos o mesmo empenho quando se trata de nossa dignidade como seres humanos? Por que não exigirmos pacificamente, mas de forma consistente e consciente, que o DPF crie mecanismos de proteção ao policial?
Algumas questões necessitam ser levantadas nesse momento, em que continuamos a discutir a Lei Orgânica, que nunca se aprova devido ao divisionismo existente no seio do DPF.
Por exemplo, por que não temos um plano de saúde próprio para os policiais federais e demais servidores? Quando falo em plano de saúde, não falo em Geap ou qualquer outro sistema em que o DPF (governo) entra com uma cota miserável. Falo do que tem que ser. O governo deve pagar um plano de saúde INTEGRALMENTE, pelo menos ao titular da função policial. Isso é fundamental, uma vez que sem uma cobertura médica de qualidade é impossível criar-se um sistema rotineiro de avaliação médica-psicológica do servidor. Essa avaliação teria que ser permanente, instituída legalmente, inclusive com absoluta autonomia e isenção, para não sofrer qualquer tipo de pressão da administração do órgão.
Por que, por exemplo, até hoje, em seus quarenta anos de existência, o DPF só realizou um encontro nacional para tratar da saúde do policial, em 2000, e apesar das recomendações do grupo de trabalho da Universidade de Brasília – UNB, que coordenou os estudos, jamais adotou qualquer medida para implantar o mínimo do recomendado?
Por que a Polícia Federal – tida com exemplo para as outras polícias brasileiras – não possui seu próprio sistema de atenção à saúde do servidor, onde inclua não somente as juntas periciais, mas também o atendimento clínico?
Por que trabalhos como o do Samops, que foi elogiado no encontro de Brasília e indicado para servir de modelo para um projeto nacional, não tiveram continuidade e praticamente nenhum apoio financeiro ou administrativo, seja das diversas gestões local ou da Direção Geral do DPF?
Por que alguns administradores do DPF se recusaram a avaliar psicologicamente seus servidores, sob as mais infundadas alegações, quando estudos mostraram que muitos policiais estavam trabalhando no limiar para manifestação de estados psicóticos?
Por que os nossos “gestores” se opõem tanto às licenças médicas, quando não é para eles mesmos, preferindo manter indivíduos não saudáveis no trabalho, colocando em risco a população, o indivíduo em si e os próprios colegas, ao invés de cobrarem do governo mais recurso e contratação de pessoal?
Todas essas questões refletem na qualidade de vida do servidor e acabam quando não atendidas por isolá-lo, estigmatizá-lo e desmoralizá-lo junto aos seus pares, o que, somado aos problemas existenciais por que esteja passando, podem em certos casos deixá-lo sem saída, quando às vezes acha que o único recurso de protesto ou de defesa seja por fim à própria vida.
A atenção ao servidor não pode se limitar a esparsos atendimentos médico ou psicológico. Ela tem que ser integral, interdisciplinar, permanente, pertencer a um programa e contar com a colaboração do mais variado leque de profissionais, capazes de dar ao servidor o acolhimento e atenção humana que ele merece e que as situações profissionais exigem.
Nesse sentido, como entendido pelo grupo da UNB, o trabalho teria que ser feito por médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas, sociólogos e demais profissionais de saúde capacitados para oferecer ao servidor uma melhor qualidade de vida e condições de aptidão para o exercício profissional.
É lamentável que nossa visão míope quanto aos investimentos que devam ser feitos no ser humano que habita cada policial venha nos causando sempre a dor da perda de colegas e amigos. Infelizmente, não podemos dizer que essa miopia é oriunda somente da Administração porquanto também ocorre entre nós mesmos. Tanto é verdade que nada fizemos para manter funcionando o Samops-RJ. Deixamos que fosse sucateado, ao invés de aprimorá-lo, mesmo que entre nossos pares havia (e creio que ainda há) os que achavam inútil o dinheiro gasto na manutenção da saúde de nossos colegas e seus familiares.
Exceto nessas lamentáveis horas, não vi nenhum movimento de reivindicação ou de protesto, a não ser por ações isoladas de algum colega, em defesa de um bem que acima de tudo visava defender e dar dignidade ao servidor policial no Rio de Janeiro.
Individualmente somos responsáveis por nossos atos, conscientes ou não, porém, coletivamente também o somos, quando por negligência, omissão ou por falta da necessária percepção, permitimos que continuemos a ser aviltados, tratados simplesmente como meros mecanismos de produção e geração de serviço, sem o devido valor que cada ser humano merece ter.
Nesse momento triste, desejo que estas minhas palavras possam servir de alerta e quem sabe despertar-nos para a conquista de direitos, que no futuro poupem-nos de chorar nossos companheiros. E que possam externar aos familiares do colega SETTA minhas sinceras condolências, afirmando que silenciosamente compartilho de sua dor e rogo ao Todo Poderoso que lhes propicie a consolação.
Que a sua passagem por nossa convivência não tenha sido vã, que nos sirva de estímulo e sinalização para que não esperemos mais para iniciarmos um movimento que restitua a autoestima, a dignidade e o respeito de que todos somos merecedores.
Dr. Sebastião Luiz Rodrigues Moreira é Agente de Polícia Federal (aposentado), cirurgião buco maxilo facial e homeopata – terapeuta holístico.
Fonte: Agência Fenapef
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