Nosso Código Penal enuncia algo que as pessoas com formação cidadã normalmente sabem: que ninguém pode alegar em seu favor o desconhecimento da lei, salvo em casos excepcionais. Claramente existe aí uma opção prática, para evitar a total ineficácia que haveria, caso fora exigível prova do conhecimento real da proibição da ação incriminada. Daí dizer-se que a conduta é culpável quando houver ciência apenas “potencial” da proibição, e não há como ser diferente. Porém, é inequívoca a sensação de injustiça que se espalha quando lidamos com esse contexto de punição real a partir da cognição ficcional da norma, o que ocorre amiúde principalmente neste Brasil de hoje, em que a produção de leis incriminadoras é maciça e confunde o próprio especialista.
Razoável então a pergunta que o empresário faz ao advogado, quando este lhe explana o emaranhado de normas penais que incidem no caso concreto: por que as leis penais não estão todas em um único Código? É uma senhora pergunta, que tem raízes nos tempos da Revolução Francesa: o chamado “movimento de codificação”, que também na Alemanha acalorou ânimos, enaltecia exatamente esse direito de o cidadão conhecer as regras que tinha de seguir, embora não deixasse de haver alguns opositores que, com argumentos contrários, realçavam que o direito é um processo histórico e que a sensação de segurança jurídica dada pela redução de todas as leis a Códigos é ilusória. Hoje em dia, com a possibilidade constante de emendar-se o Código Penal, com uma versão diariamente atualizada disponível na internet, talvez esse argumento contrário à codificação perdesse algo de sua força.
As normas penais não vêm todas ao Código porque o legislador prefere construir leis com temas específicos (fisco, lavagem, valores mobiliários, meio ambiente, trânsito, segurança nacional, dentre outros) em que o dispositivo criminal é como um mero apêndice, uma ameaça para quem desobedecer algo sobre o assunto geral de que cuida a lei. Com o tempo, claro, a falta de sistemática faz surgir figuras parelhas em diplomas diferentes, a exemplo da dupla previsão, quase idêntica, da chamada “propaganda enganosa”, quer na Lei de Concorrência Desleal, quer no Código de Defesa do Consumidor. Ou pior, condutas diferentemente descritas na lei geram, nos fatos, incoerência lógica: pichar a parede constitui, em lei específica, crime contra o ordenamento urbano apenado com o triplo da pena do crime de dano do Código Penal. Alguém notou que, na prática, quem, por vingança, põe abaixo o muro do vizinho com uma marreta merece pena mínima três vezes menor que aquele que resolver, no tal muro, pintar com spray o nome da namorada. E como esse exemplo há muitos outros.
Então um Código permite sempre a comparação entre os injustos, a sistematização por temas, a hierarquização dos bens jurídicos, iluminando incoerências. O problema é que essa sistematização não é o único trabalho do Código, porque ao lado dela está a construção de todo um corpo principiológico, chamado Parte Geral, que se aplica a qualquer crime. Esse corpo depende de uma decantação teórica que custa a alcançar mínimo consenso, daí que um novo Código Penal, ao menos até hoje, demandou sempre um diálogo lento e amplo com muitas forças sociais, dentre elas as várias correntes de pensamento formadas na Universidade. Como um novo Código é trabalho de décadas e uma nova lei incriminatória é questão de dias, o descompasso entre um e outra é quase inevitável.
Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) e membro da União Brasileira de Escritores
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