Tal como a revista “Veja” fez há dois anos, a revista “Isto É”, numa matéria de capa, abordou o tema Polícia Federal. Apesar dos elogios que encheram a todos de satisfação, a revista, da mesma forma que sua concorrente, procurou o caminho mais fácil para produzir a reportagem. Seus jornalistas preferiram abordar o óbvio, preferiram mostrar aos leitores o que está na vitrine. Foi uma bela reportagem, mas a Polícia Federal merecia mais. Os leitores precisam saber como a Polícia Federal chegou ao que é hoje – o povo brasileiro precisa saber como isso foi conseguido.
Sei que alguns podem não gostar do que vou comentar, mas não me importo, cheguei numa idade em que é proibido ter medo. Muitos estão extasiados, dirão que o passado nada vale, mas me permito discordar. Aprendi com o grande Octávio Paz que “a memória não é somente a capacidade de recordar, que quando a memória se dissolve o homem se dissolve”. Embora o texto produzido omita uma parte importante da história, também estou orgulhoso, também me emocionei, também vibrei com os feitos da Polícia Federal. Tenho certeza de que todos os policiais federais – novos e antigos – ficaram felizes com o que leram, mas ficar calado é difícil. Em nome de muitos que deram seu suor, seu sangue e até a vida por esta instituição, teimo em repetir que a história precisa ser respeitada.
Existe uma passagem de William Faulkner que repito sempre. Ele disse, certa vez, que “para escrever um bom romance alguém precisa de três predicados: imaginação, experiência e observação. Que na falta de um ou até mesmo de dois dos atributos, mesmo assim era possível escrever algo interessante”. Nas universidades ensinam aos estudantes de jornalismo que para produzir uma boa matéria são necessários, também, alguns atributos: um bom assunto, uma capa chamativa e repórteres competentes. Nesta oportunidade, a revista “Isto É” tinha um bom assunto e produziu uma boa capa. Seus repórteres, no entanto, deixaram a competência de lado. Tendo na mão uma instituição com uma história rica, repetiram o que todos estão vendo – o sucesso da Polícia Federal. Não investigaram, não procuram saber ou não quiseram mostrar porque isso está acontecendo.
Na reportagem da “Veja”, dois anos atrás, foi dito – não esqueci – pelo dirigente máximo da PF que “a instituição é composta por três tipos de gente: dez por cento de policiais corruptos e dez por cento de homens combativos e indignados com a corrupção. Os outros 80%, embora honestos, ainda fazem vista grossa aos colegas que cometem delitos”. Na época escrevi que o dirigente deveria saber, devido, principalmente, ao perigo que ronda seu dia-a-dia, que policiais precisam de confiança mútua. Que a seleção deve ser feita pelo Órgão, que tem o dever de selecionar gente de bem – continuo com esta mesma opinião.
Agora a “Isto É” diz, entre outras, que até o ano de 2000 “a PF era vista como uma organização repleta de policiais “chuta portas” e apodrecida pela corrupção”. Diz que “o orçamento ganhou reforço. Saiu de R$ 100 milhões em 1999 para R$ 200 milhões no ano seguinte. Que este ano, o orçamento da PF é de R$ 600 milhões”. Diz que hoje a PF tem 11 mil policiais, tem o apoio de cinco helicópteros, nove aviões, duas dezenas de embarcações e contadas 2.327 viaturas. Diz que antes, as investigações ficavam restritas à burocracia da saleta do delegado e do escrivão. Diz também que a parafernália de investigação de que a PF tem lançado mão inclui equipamentos dignos de filmes de espionagem e que seus policiais são treinados em cursos ministrados por policiais da Alemanha, dos Estados Unidos e da Inglaterra.
As duas revistas disseram muitas coisas. Muitas nos orgulham, algumas me entristecem. Quando essas revistas ou outras quiserem fazer os elogios que a Polícia Federal merece, precisam parar de ofender quem não merece. Precisam saber que antes dessa tecnologia toda, o serviço policial era feito por gente que atravessou o país usando todo tipo de transporte – do lombo do jumento aos prosaicos barcos da Amazônia. Que rios eram atravessados por pioneiros com metralhadoras na cabeça em busca de plantações de maconha e bandidos perigosos. Essas pessoas eram mal remuneradas, não tinham (infelizmente) uma parafernália para apoiá-los, mas deram tudo de si para cumprir suas missões. As revistas precisam parar de utilizar termos como gente corrupta e “chuta porta” a quem deu, repito, seu suor, seu sangue e até a vida para construir o que a Polícia Federal é hoje. Precisam entender que a “tecnologia” da época incluía, quando necessário, o “chuta porta”, da mesma forma que as guerras de antes eram feitas, cara a cara, sem o auxílio de mísseis e radares. O mundo mudou, embora alguns façam questão de não perceber…
A revista não sabe nem quis perguntar por que hoje é exigido nível superior para ingresso na PF. Não sabe como foi desenvolvido o famoso “Guardião”, como diz ela: um “supersistema de computadores que possibilita a administração de escutas telefônicas”. Não vou entrar em minúcias, mas não resisto a tentação de revelar um detalhe: foi difícil convencer alguns que o Guardião era um projeto importante, que verbas precisavam ser liberadas para dar andamento ao mesmo. Foi gente com bastante tempo na polícia e idealista que concretizou esse supersistema. Essa gente faz parte de uma história que agora estão tentando desprezar. A reportagem diz também que as investigações ficavam restritas a burocracia da saleta do delegado. Alguém precisa dizer para eles que essa prática continua sem atestado de óbito… Que outra gente idealista está pedindo que o jurássico inquérito policial seja de vez enterrado. Que a carreira policial precisa ser implantada com início, meio e fim.
Poderia falar muitas outras coisas, mas vou ficar por aqui. Não quero correr o risco de ser acusado de não estar feliz com o sucesso de uma polícia que, juntamente com muitos outros, ajudei a construir. Tomara que continue o sucesso, tomara que outras revistas divulguem o trabalho espetacular da Polícia Federal. Vou continuar vibrando e, às vezes, até me emocionando. Mas, por favor, respeitem a nossa história. Não respeitá-la, só pode ser iniciativa de gente que não faz parte dela ou não ajudou a construí-la.
PS: O diabo é quem nos informa o que se passa por debaixo da mesa.
Raul Seixas
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