Fonte: Brasil Post
Oficialmente, a ditadura militar no Brasil teve fim em 1985, mas os recentes protestos registrados pelo País nos últimos 16 meses reascenderam a discussão sobre o fim do chamado “último braço” do regime militar, a Polícia Militar. A repressão contra manifestantes teve em vários casos a participação de policiais militares, algo que impulsionou até mesmo projetos que correm no Congresso Nacional. Nesta semana, os próprios PMs indicaram que querem o fim do militarismo na corporação.
É o que aponta uma pesquisa divulgada na última quarta-feira (30) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Um total de 73,7% dos 21.101 policiais militares, civis, federais, rodoviários federais, bombeiros e peritos criminais entrevistados em todos os Estados brasileiros, de 30 de junho a 18 de julho deste ano, manifestou querer a desvinculação da polícia das Forças Armadas, algo instituído ainda nos anos 60.
O número é ainda maior quando considerados apenas os PMs entrevistados (76,1%), o que aumenta a necessidade de que o quadro seja debatido. O tema, contudo, é polêmico. O que pouca gente se recorda é que a desmilitarização das policiais já consta em um dos tópicos da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), realizada em agosto de 2009, em Brasília, e que reuniu órgãos da sociedade civil, representantes dos policiais e membros dos governo federal.
“Realizar a transição da segurança pública para atividade eminentemente civil; desmilitarizar as policiais; desvincular a polícia e o Corpo de Bombeiros das Forças Armadas; rever regulamentos e procedimentos disciplinares; garantir livre associação sindical, direito de greve e filiação político-partidária; criar código de ética único, respeitando a hierarquia, a disciplina e dos direitos humanos; submeter irregularidades dos profissionais militares à Justiça Comum”, diz a diretriz de número 12 do relatório final da Conseg.
Os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro apontam justamente nessa direção, já prevista há cinco anos. “Os policiais disseram que isso é importante para o trabalho da polícia, que é preciso ter regras, estar parametrizado sobre o que podem ou não fazer. Eles querem autonomia, mas é preciso modernizar o regulamento para que eles também tenham seus direitos preservados”, disse o coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, em declarações reproduzidas pela Agência Brasil.
Os números do levantamento comprovam isso: 93,6% acreditam que é preciso modernizar os regimentos e códigos disciplinares, e 86,7% dos entrevistados se dizem favoráveis à regulamentação do direito à sindicalização e de greve. E há mais: para 87,3%, o foco de trabalho da PM deveria ser reorientado para proteção dos direitos da cidadania, e 66,2% acreditam que as carreiras policiais não são adequadas da maneira como estão organizadas.
Tais inadequações são o que levam às Polícias Militares brasileiras a serem hoje organismos “ingovernáveis”, nas palavras do jurista Walter Maierovitch. “Temos PMs estaduais não educadas para a legalidade democrática. As academias militares não educam. É uma PM que acha que precisa ser trabalhada para reprimir. Então temos todos esses abusos. Nenhum governador ou secretário de Segurança Pública tem o governo das polícias. A PM faz tempo mostram isso. É aquela polícia força auxiliar da ditadura militar”, afirmou, em recente entrevista à Rádio CBN.
Humilhações
Vistos como “vilões” durante os recentes protestos, os policiais sofrem dentro da própria corporação. De acordo com a pesquisa do Fórum Brasileiro, 65,9% disseram ter sofrido discriminação por serem policiais e 59,6% afirmaram já ter sido humilhados ou desrespeitados por superiores. Outro dado mostra que 43,2% acham que policial que mata um criminoso deve ser premiado e inocentado pela Justiça e 83,7% afirmaram que um policial que mata suspeito deve ser investigado e julgado.
Entre as dificuldades no trabalho, 99% apontam os baixos salários, 98,2% o treinamento e formação deficientes, 97,3% o contingente policial insuficiente e a falta de verbas para equipamentos e armas. Foram citadas ainda as leis penais inadequadas (94,9%) e a corrupção nas polícias (93,6%).
Tais dificuldades fizeram vítimas dentro de algumas PMs pelo País. Darlan Menezes Abrantes, de 39 anos, foi expulso da Polícia Militar do Ceará em janeiro deste ano, após 13 anos de serviços prestados e por ter escrito um livro – Militarismo: um Sistema Arcaico de Segurança Pública –, no qual questiona as práticas adotadas dentro da corporação.
“No meu treinamento, sabe o que um oficial fez comigo? Pegou uma folha em branco e disse 'Darlan, aqui estão todos os seus direitos', em uma folha sulfite em branco, e jogou na minha cara. Para você ver. Coloquei no livro que 'a escravidão ainda existe no Brasil e mora na PM'. Do subtenente para baixo, o soldado não tem direito a nada. Oficial manda e desmanda, é escravidão mesmo”, contou a este repórter, em fevereiro, em matéria publicada no R7.
Os dados do Fórum Brasileiro apontam que isso não está longe da realidade: 58,3% acreditam que a hierarquia nas polícias provoca desrespeito e injustiças profissionais e 86,2% afirmam que a gestão deve ser mais eficiente. A corrupção nas policiais, citada por 93,6% dos entrevistados, é vista como uma outra grande dificuldade a ser vencida diariamente pelos PMs.
Uma nova polícia. Mas qual?
As duas frentes mais debatidas sobre os rumos da desmilitarização apontam dois caminhos: um seria fundir as polícias civis e militares, enquanto a outra apontaria a criação de uma nova polícia brasileira, do zero, sem os vícios das anteriores e com uma carreira e regime estatutário inteiramente novo. Mas, de acordo com a secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, o tema ainda está longe de um consenso, até mesmo dentro das polícias.
“Talvez, tenhamos mudanças internas na polícia e a sociedade não fique contente. Os policiais de base e a cúpula certamente enxergam de forma distinta a desmilitarização por diversas razões”, disse. O professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, Oscar Vilhena Vieira, completou. “Não estamos dizendo que tem que ter uma polícia sem hierarquia. Ela tem que ser hierarquizada, uniformizada, e tem que ter um código disciplinar adequado e compatível com os padrões democráticos que hoje existem. A desvinculação é das Forças Armadas e não do Estado”.
No âmbito legislativo, a discussão está em andamento há anos e há pelo menos três projetos que tratam do assunto no Congresso Nacional. O mais adiantado deles é a proposta de emenda à Constituição (PEC) 51/2013, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que reorganiza as forças policiais brasileiras, extinguindo o seu caráter militar e determinando que elas atuem tanto no policiamento ostensivo quanto nas investigações dos crimes, diferente do cenário policial atual.
“É preciso rever, em primeiro lugar, o próprio treinamento desses policiais e o cotidiano de humilhações a que estão submetidos devido à hierarquia e a obediência servil aos seus superiores. Essa violência na formação policial acaba se traduzindo em violência nas ruas contra o cidadão”, comentou a senadora Ana Rita (PT-ES), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado.
“O que estamos discutindo é uma formação diferenciada, cidadã, uma mudança cultural e institucional na forma de atuar das polícias, com unificação das atividades policiais em uma única corporação, formando o ciclo completo. Ou seja, um tipo de polícia que fará tanto o policiamento ostensivo, a prevenção, quanto o trabalho investigativo, de inteligência (…). O fortalecimento da democracia brasileira passa por questionar a manutenção das polícias militares. Não é saudável convivermos com polícias tendo uma forte ligação com o poder militar e com práticas violentas que violam os direitos humanos”, emendou a senadora.
A mudança, para os policiais entrevistados, ajudaria a diminuir a violência. Para 71% deles, cabe ao policial evitar as mortes, independente de quem seja a vítima. Não é o que acontece atualmente, segundo recentes levantamentos que levam em conta o grau de letalidade da PM. Também seria possível ver uma diminuição das denúncias de tortura, algo que um recente levantamento da ONG Humans Rights Watch apontou como grave no Brasil, ao identificar 64 casos de ilegalidades cometidas por policiais no País.
Mas, conforme informou o Brasil Post em maio deste ano, especialistas acreditam que a desmilitarização é só parte da solução para a polícia no Brasil. Ela precisa estar ligada ainda uma nova estratégia de segurança pública, algo maior e que demanda um planejamento mais apurado e longo. A discussão continua.
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