NOTA TÉCNICA Nº 003/2016-FENAPEF
Assunto: Projetos de lei que visam retirar o atributo de “autoridade policial” dos policiais e restringi-lo exclusivamente ao cargo de “delegado de polícia”
Ementa: PL nº 6433/2013 de autoria do Dep. Bernardo Santana de Vasconcellos (PR/MG) e PL nº 7/2016 de autoria do Deputado Sergio Vidigal (PDT/ES), que alteram dispositivos da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) elabora a presente Nota Técnica, com o fim de subsidiar os debates parlamentares sobre os Projetos de Lei nº 6.433/2013 e 07/2016, que tramitam na Câmara dos Deputados, visando alterar dispositivos da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), para retirar o atributo de “autoridade policial” dos agentes públicos policiais e restringi-lo ao cargo de “delegado de polícia”.
2. O Projeto de Lei nº 6.433/2013, de autoria do Deputado Bernardo Santana de Vasconcellos (PR/MG), visa acrescentar o §2º ao art.10 na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), com a seguinte redação:
Art. 10 …
2º – Considera-se autoridade policial, para os fins legais, o delegado de polícia da área do fato, da delegacia especializada de proteção à mulher ou que primeiro tomar conhecimento da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher. (grifo nosso)
3. O Projeto de Lei nº 7/2016, do Deputado Sergio Vidigal (PDT/ES) também pretende alterar a Lei Maria da Penha e teve seu parecer aprovado em 29/06/2016 pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania com o acréscimo da Emenda de Redação nº 8 – CCJ, de autoria da Senadora Marta Suplicy, que dispõe: Substitua-se, onde couber, no PLC 07, de 2016, a expressão “autoridade policial” por “delegado de polícia”. Outros projetos de lei estão tramitando no Congresso Nacional com a mesma finalidade.
4. Preliminarmente, esclarece-se que o termo “autoridade policial” é inerente a todos os agentes públicos policiais que integram dos órgãos de polícia definidos no art. 144 da Constituição Federal e executam a atividade de polícia do Estado. Por isso, as propostas que visam retirar esse atributo dos policiais atentam contra a soberania da Constituição, o princípio da eficiência e teria impacto sobre todo o sistema de segurança pública do País.
A Constitucionalização da Segurança Pública
5. A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova ordem jurídica no Brasil e incluiu, pela primeira vez, a segurança pública no seu texto, instituindo-a como um direito fundamental e um direito social de responsabilidade de todos, além de defini-la como um dever do Estado, exercido para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. No texto constitucional o Capítulo III “Da Segurança Pública” integra o Título V, “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”.
6. A constitucionalização da segurança pública estabeleceu um novo desenho para a estrutura, organização e funcionamento da segurança pública e órgãos de polícia na democracia brasileira e produziu inúmeros avanços para o país, conforme leciona o Professor-Doutor Cláudio Pereira de Souza Neto, no livro Comentários à Constituição do Brasil, de Gilmar Ferreira Mendes e outros[1]:
A história constitucional brasileira está repleta de referências difusas à segurança pública. Mas até a Constituição de 1988, não havia capítulo próprio, nem previsão constitucional mais detalhada, como agora se verifica. As Constituições anteriores não disciplinavam a segurança pública em um único preceito. Por ter “constitucionalizado”, em detalhe, a segurança pública, a Constituição de 1988 se individualiza ainda no direito comparado, em que também predominam referências pontuais. […] (grifo nosso)
7. O autor aponta ainda as consequências da Constitucionalização da Segurança pública para as políticas de segurança e legislação infraconstitucional:
A constitucionalização traz importantes consequências para a legitimação da atuação estatal na formulação e na execução de políticas de segurança. As leis sobre segurança, nos três planos federativos de governo, devem estar em conformidade com a Constituição Federal, assim como as respectivas estruturas administrativas e as próprias ações concretas das autoridades policiais. O fundamento último de uma diligência investigatória ou de uma ação de policiamento ostensivo é o que dispõe a Constituição. E o é não apenas no tocante ao art. 144, que concerne especificamente à segurança pública, mas também no que se refere ao todo do sistema constitucional. (grifo nosso)
8. O Constitucionalista Michel Temer[2] destaca a imperatividade dos preceitos constitucionais:
O Estado, já dissemos, é uma sociedade. Pressupõe organização. Os preceitos organizativos corporificam o instrumento denominado Constituição. Portanto, a Constituição é o conjunto de preceitos imperativos fixadores de deveres e direitos e distribuidores de competências, que dão a estrutura social, ligando as pessoas que se encontram em dado território e certa época.
9. A constitucionalização da segurança pública buscou organizar e dar maior rigidez ao regramento da atividade policial – que executa o uso legítimo da força pelo Estado – e, ao mesmo tempo, limitar alterações substanciais em seu conteúdo pelo legislador ordinário, visando uma maior garantia ao novel Estado Democrático de Direito.
10. Destarte, a partir do que dispõe a Constituição devem se fundamentar a política, organização e estrutura da segurança pública do País, abrangendo as leis em âmbito federal, estadual e municipal que a ela se subordinam, conforme ensina o Ministro Barroso[3]: “toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado”.
A “autoridade” como prerrogativa do exercício do poder do Estado
11. O Estado democrático brasileiro, para o cumprimento do dever de alcançar o interesse público, diante dos múltiplos cometimentos que lhes assistem (saúde, educação, segurança, etc.), reparte seus encargos entre diferentes unidades, denominadas órgãos públicos. Os órgãos públicos são integrados por agentes que são as pessoas físicas que pertencem aos seus quadros, e quando atuam, manifestam a própria vontade do Estado[4].
12. O renomado administrativista José dos Santos Carvalho Filho[5] conceitua que “os agentes públicos são todos aqueles que, a qualquer título, executam uma função pública como prepostos do Estado. São Integrantes dos órgãos públicos, cuja vontade é imputada à pessoa jurídica. Compõem, portanto, a trilogia fundamental que dá o perfil da Administração: órgãos, agentes e funções”.
13. Assim, a atuação dos agentes públicos não se trata do exercício de um poder particular, mas sim da concretização do poder público em abstrato e, por isso, os agentes públicos gozam da prerrogativa de “autoridade” em relação aos particulares.
14. Por outro lado, não se pode confundir as funções do órgão público exercidas pelos agentes públicos (que possuem prerrogativa de autoridade), com as atribuições dos cargos públicos que eles ocupam. Conforme distinção apresentada por Hely Lopes Meirelles[6]:
Cada órgão público, como centro de competência governamental ou administrativa, tem necessariamente funções, cargos e agentes, mas é distinto desses elementos que podem ser modificados, substituídos ou retirados sem supressão da unidade orgânica. Isso explica porque a alteração de funções, ou a vacância de cargos, ou a mudança de seus titulares não acarreta a extinção do órgão.
15. Conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello[7], “os cargos públicos são as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente, previstas em número certo, com denominação própria, retribuídas por pessoas jurídicas de Direito Público e criadas por lei”.
16. Segundo Damásio de Jesus[8], “a noção de autoridade para o direito está indissociavelmente ligada a de poder, de ter aptidão para decidir e impor a sua decisão a outrem nos termos e limites da lei”. O autor explica quem são os agentes públicos que podem ser considerados autoridades, dentre os quais se incluem os servidores públicos, categoria em que se enquadram todos os cargos policiais:
No quadro dos agentes públicos podem ser considerados autoridades: a) os agentes políticos, que já o são por natureza, em decorrência da mera investidura no cargo ou do exercício das funções; b) os servidores públicos, quando desempenharem atividade que pressuponha poder administrativo; c) os particulares em colaboração com a atividade estatal, quando, no desempenho da atividade requisitada ou delegada, fiquem investidos de poder decisório capaz de afetar outras pessoas. (grifo nosso)
17. Em decorrência da prerrogativa de autoridade, a desobediência do particular à ordem legal do agente público pode vir a configurar crime, assim como também pode incidir em abuso de autoridade se essa conduta exceder os limites legais de sua autoridade. A Lei do Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/65) define que são autoridades todos os agentes públicos, não se limitando a cargos, pois é inerente ao exercício da função pública: “5º. Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”.
18. A lei do abuso de autoridade aponta ainda que existe um escalonamento hierárquico entre as autoridades públicas: “2º. O direito de representação será exercido por meio de petição: a) dirigida à autoridade superior que tiver competência legal para aplicar, à autoridade civil ou militar culpada, a respectiva sanção (…)”. Esse escalonamento hierárquico de autoridades é inerente à estrutura do quadro funcional de cada órgão público.
19. Portanto, a “autoridade” é uma prerrogativa inerente ao exercício das funções do Estado pelos agentes públicos, independentemente do cargo que ocupam. As atribuições dos cargos públicos determinam os limites de atuação e de exercício dessa autoridade.
A ”autoridade policial” dos agentes públicos policiais
20. A Constituição Federal 1988 dispõe no art. 144 que a segurança pública será exercida pelos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares e corpos de bombeiros militares. Assim, todos os agentes públicos policiais que exercem a função de segurança pública nos órgãos policiais são “autoridades policiais”.
21. Veja-se que na Constituição não há qualquer definição ou limitação do conceito de autoridade policial a qualquer cargo. O texto constitucional contém a expressão “autoridade policial” apenas uma vez, no capítulo que trata do estado de defesa e estado de sítio e, mesmo neste, sem se referir a qualquer cargo público: “ 136. § 3º Na vigência do estado de defesa: I – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial”.
22. A falta de definição ou limitação da “autoridade policial” no texto constitucional expressa o “silêncio eloquente”, uma vez que o atributo é intrínseco a todos os agentes públicos policiais que executam o “múnus público” da atividade de policiamento do País definida na Constituição.
23. O cargo de delegado de polícia somente poderia portar a exclusividade da prerrogativa de autoridade policial se o Constituinte tivesse lhe outorgado a natureza de “agente político” ou de “órgão público” do Estado, tal como fez expressamente com o cargo de juiz (Art. 92. “São órgãos do Poder Judiciário: […] III – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV – os Tribunais e Juízes do Trabalho; V – os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI – os Tribunais e Juízes Militares; VII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios”). Porém, não foi a vontade do Constituinte Originário atribuir ao cargo de delegado de polícia a prerrogativa de agente político ou de órgão público do Estado e, por isso, não pode o atributo de “autoridade policial” do Estado ser exclusivo do cargo de delegado de polícia.
24. Artigo do Desembargador Álvaro Lazarini[9]leciona que o policial é autoridade nos limites da sua investidura legal e independentemente da denominação do cargo público que ocupa. Ele define com propriedade o conceito de autoridade policial:
Autoridade Policial é um agente administrativo que exerce atividade policial, tendo o poder de se impor a outrem nos termos a lei, conforme o consenso daqueles mesmos sobre os quais a sua autoridade é exercida, consenso esse que se resume nos poderes que lhe são atribuídos pela mesma lei, emanada do Estado em nome dos concidadãos.
25. A doutrina de Damásio de Jesus[10]explica que “o policiamento é atividade de execução, cujo comando e chefia cabem aos agentes políticos, mas cuja efetivação concreta incumbe aos servidores públicos”. O autor cita como exemplo, que a chefia e o comando da atividade policial no plano estadual incumbem ao Governador, auxiliado pelo Secretário de Estado, ambos agentes políticos, mas o desempenho concreto dessa atividade compete aos servidores ocupantes de cargos públicos de policial civil ou militar. O autor apresenta ainda o conceito de autoridade policial:
Considerando que autoridade é qualquer agente público com poder legal para influir na vida de outrem, o qualificativo “policial” serve para designar os agentes públicos encarregados do policiamento, seja preventivo, seja repressivo. Assim, podemos, lato sensu, conceituar autoridade policial como todo servidor público dotado do poder legal de submeter pessoas ao exercício da atividade de policiamento. Nesse sentido há antigo acórdão do STF, segundo o qual “soldado do policiamento de uma cidade do interior, fardado e armado, está investido de uma parcela do poder público”; “soldado da polícia, sempre fardado e armado, é a encarnação mais presente e respeitada da autoridade do Estado… (RTJ, 75:609). (grifo nosso)
26. A jurista Ada Pellegrini Grinover[11], integrante da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto da Lei 9,099/95, assinalou que “qualquer autoridade policial poderá dar conhecimento do fato que poderia configurar, em tese, infração penal. Não somente as polícias federal e civil, que têm a função institucional de polícia judiciária da União e dos Estados (art. 144, § 1°, inc. IV, e § 4°), mas também a polícia militar”.
27. Por ocasião da publicação da nº 9.099/95, que trata sobre a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, o conceito de autoridade policial restou fixado nos entendimentos dos órgãos judiciários, da doutrina e da jurisprudência, como sendo inerente a todo agente público que exerce função policial, independentemente do cargo. Dessa forma, estão autorizados a lavrar Termos Circunstanciados e a encaminhá-los aos Juizados todas as autoridades policiais do art.144, sem a necessidade de participação do delegado de polícia.
A inconstitucionalidade da restrição da “autoridade policial” ao cargo de delegado de polícia
28. Não se pode restringir a exclusividade do atributo de “autoridade policial” ao cargo de delegado de polícia, sob pena de violar a supremacia constitucional e inviabilizar o funcionamento dos órgãos de polícia do País. A atividade de policiamento do Estado é desempenhada pelos órgãos públicos, por intermédio dos agentes públicos policiais, categoria de servidores que comporta vários cargos policiais, inclusive o de delegado de polícia e todos executam suas atribuições determinadas pelo texto constitucional.
29. Além disso, o cargo de delegado de polícia, por somente existir em dois órgãos policiais (polícia federal e polícias civis), resultaria em subordinar todos os demais órgãos policiais – Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros Militares, à autoridade policial exclusiva do delegado de polícia, uma atecnia absurda e inconstitucional.
30. Note-se que o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41) dispõe sobre a persecução penal e faz constar o termo “autoridade policial” ou “autoridades policiais” quarenta e nove (49) vezes, porém sem conceituá-los ou restringi-los a qualquer cargo. Somente há referência ao cargo “delegado de polícia” no artigo 295, quando trata da prisão especial: “serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: XI – os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.
31. Diversas são as referências contidas no Código de Processo Penal sobre atribuições a serem realizadas pela “autoridade policial” e que não são realizadas pelo cargo delegado de polícia, como exemplo:
Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:
I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;
II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;
III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
[…]
32. Assim, não são os delegados de polícia que quando têm conhecimento da prática de infração penal “dirigem-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais”, nem são eles que “apreendem os objetos que tiverem relação com o fato” ou tampouco os que “colhem todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”, pois essas atividades são desempenhadas pelos policiais ocupantes de outros cargos, como agentes e escrivães de polícia, somente de forma excepcional é feita pelo delegado.
33. Dessa forma, interpretar que a autoridade policial é sinônimo de delegado de polícia seria, somente para os fins do inciso I, do art. 6º, atribuir ao delegado a obrigação de estar em todos os locais de ocorrências de crime, desde uma briga de vizinho, até nos crimes a bordo de embarcações e aeronaves, pois somente este cargo teria a competência de cumprir o dispositivo legal e de adotar as medidas cabíveis no caso de descumprimento.
34. O Código de Processo Penal é norma geral sobre o processo penal no Brasil e por isso estabelece inúmeras atribuições aos órgãos incumbidos da persecução penal. O CPP cita as atribuições do Ministério Público (e não do promotor de justiça ou procurador federal), as atribuições do Juiz (que é órgão definido no art. 92 da Constituição) e ainda as atribuições da polícia e das autoridades policiais (sem adentrar nos diversos cargos que compõem os órgãos de polícia e desempenham as atividades de persecução penal). Dessa forma, dá-se maior vigência ao texto do CPP, resguardando-o da flexibilidade das alterações legislativas inerentes ao funcionamento dos órgãos públicos e a dinâmica de suas organizações internas e composição dos cargos públicos.
35. Destaque-se que somente a recente Lei nº 12.830/2013 reservou ao cargo de delegado de polícia “a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, para a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”, mas a atividade de apuração de infrações penais é desempenhada também pelos demais cargos policiais (agentes, escrivães, papiloscopistas, peritos, etc.).
36. Assim, a Lei nº 12.830/2013 ao dispor sobre a “condução da investigação criminal” pelo delegado de polícia, refere-se à posição de comando na estrutura hierárquica da função de apuração criminal pelo inquérito policial, o que não significa que o delegado executa de forma exclusiva a atividade de investigação criminal, até porque só existe comando se existirem comandados, e esses são todos os policiais que efetivamente executam a atividade policial investigativa definida na Constituição Federal e, para tanto, possuem o atributo de autoridade policial.
37. As funções constitucionais da Polícia Federal estão definidas no art. 144, §1º, que são: apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas (I); prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho (II); exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (III); exercer as funções de polícia judiciária da União(IV). Todas essas funções – polícia investigativa, polícia administrativa, polícia de soberania/fronteiras e polícia judiciária, respectivamente -, são exercidas mediante inúmeras atividades desenvolvidas por todos os cargos da “carreira policial federal”.
38. As funções constitucionais das Polícias civis também são definidas no art.144, §4º: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Assim a função de polícia judiciária e a função de apuração de infração penais pelas polícias civis também são desenvolvidas por todos os cargos policiais civis, sob a direção dos delegados de polícia de carreira.
39. Ou seja, o exercício das funções da Polícia Federal e Polícias Civis dos Estados definidas na Constituição Federal não são desempenhadas exclusivamente pelos delegados de polícia, mas também por policiais de outros cargos, todos no exercício da autoridade policial do Estado. Por exemplo, é no exercício da autoridade policial que um agente da polícia civil persegue alguém que acabou de praticar um homicídio e o prende em flagrante, ou quando investiga roubo de cargas em rodovia e retém mercadorias. Também é a autoridade policial do agente federal que o autoriza a investigar e prende um traficante internacional de entorpecentes, ou multar uma empresa por realizar atividade de vigilância privada sem autorização legal, ou impedir um estrangeiro de entrar no território nacional por não portar a documentação necessária ou, ainda, quando permite que um estrangeiro saia do país por atender aos requisitos legais.
40. Além disso, os outros órgãos policiais definidos no art. 144 da Constituição Federal também exercem atribuições policiais que não se referem à condução de inquérito policial (e que por isso não possuem o cargo de delegado de polícia), mas que detém o atributo de autoridade policial. Ou seja, a Polícia Rodoviária Federal realiza o patrulhamento ostensivo das rodovias federais e a Polícia Ferroviária Federal das ferrovias federais; a polícia Militar realiza o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública e os corpos de bombeiros militares executa as atividades de defesa civil e todas essas atribuições são desempenhadas pelos agentes públicos policiais no exercício da autoridade policial do Estado definidos pela Carta Magna.
41. Portanto, não se há de confundir as atribuições do órgão policial – que são definidas na Constituição Federal e exercidas pelos agentes públicos policiais, com as atribuições do cargo policial, que são criadas pelas leis ordinárias quando dispõem sobre a estrutura administrativa e quadro de pessoal de cada órgão. Aliás, a própria Constituição Federal determina no § 7º do art. 144 que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.
42. Onde a Constituição Federal iguala, não cabe ao intérprete ou legislador diferenciar. Conforme leciona J. J. Gomes Canotilho [12]:
O intérprete e aplicador do direito deve fazer as leis e demais normas infraconstitucionais adaptarem-se ao ordenamento constitucional, não este àquelas, a fim de não conferir à constituição caráter demasiadamente aberto, a ser preenchido a seu talante pelo legislador ordinário, e de não se chegar a interpretações constitucionais inconstitucionais.
43. Assim, resta claro que a “autoridade policial” é um atributo indissociável e irrenunciável dos agentes públicos policiais que executam as funções dos órgãos de polícia definidos no art. 144 da Constituição Federal. Por isso, não pode o legislador ordinário retirar-lhes esse atributo e restringi-lo somente a um cargo policial, o cargo de delegado de polícia, pois afrontaria a supremacia da Constituição e violaria os princípios da isonomia e da igualdade positivados no art. 5°, caput, do texto constitucional.
Contestações aos desvirtuamentos do termo ”autoridade policial”
44. Há na doutrina quem desvirtue o alcance do termo “autoridade policial” para restringi-lo ao cargo de delegado de polícia, a partir da interpretação de dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) e de leis infraconstitucionais, desconsiderando a constitucionalização da segurança pública que estabeleceu novas regras para a atividade de policiamento do Estado exercida pelos órgãos policiais. Dentre esses argumentos destacamos: a) que a autoridade policial estaria vinculada à função de polícia judiciária, exclusiva do cargo de delegado de polícia; b) que pela leitura do CPP o delegado de polícia seria “autoridade” e os demais policiais seriam “agentes de autoridade”; c) que o delegado de polícia seria autoridade policial e os demais policiais exerceriam somente o poder de polícia geral; d) que as Leis nº 12.830/2013 e nº 13.047/2014 restringiram a “autoridade policial” ao cargo de delegado de polícia. Todos esses argumentos não têm fundamento constitucional e serão contestados pontualmente a seguir.
a) A diferenciação constitucional das “funções de polícia judiciária” e “funções de apuração de infrações penais”
45. Em que pese que o Código de Processo Penal ter mais de setenta e cinco anos e ser anterior à constitucionalização da segurança pública, as controvérsias sobre o conceito de autoridade policial têm origem no artigo 4º do título que trata do inquérito policial, que dispõe: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.
46. Há na doutrina quem interprete o citado art.4º conjuntamente com o art. 144, §1º, IV, da Constituição Federal, que dispõe que “a polícia federal destina-se a exercer com exclusividade as funções de polícia judiciária da União”, para chegar a conclusão de que o delegado de polícia é quem conduz o inquérito policial e por isso teria a exclusividade do atributo de autoridade policial. Há outros autores que fazem a interpretação conjunta do art. 4º, do CPP, com o art. 144, § 4º, da Constituição Federal que dispõe que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.
47. Porém, essa hermenêutica não tem fundamento constitucional, pois a “exclusividade da função de polícia judiciária” é atribuída pela Constituição somente à Polícia Federal e não às policiais civis dos Estados, o que por essa interpretação excluiria os delegados da polícia civil do atributo de autoridade policial, que seria somente dos delegados de polícia federal. Por outro lado, se for feita uma interpretação ampliativa para que o conceito de autoridade policial também alcance os delegados da polícia civil, é razoável que também se faça a mesma interpretação para alcançar aos demais policiais que integram a Polícia Federal e Polícias Civis, pois atuam no desempenho da “função de polícia judiciária” por imposição da Lei Maior.
48. A Constituição Federal expressamente distingue a “função de polícia judiciária” da “apuração de infrações penais”, conforme se depreende da leitura do §1º, do art.144, que ao dispor sobre a Polícia Federal, trata no inciso I da “apuração de infrações penais” e no inciso IV da “função de polícia judiciária da União”:
1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
[…]
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (grifo nosso)
49. Também, ao dispor sobre as polícias civis, o texto Constitucional cita expressamente essas duas atribuições, “as funções de polícia judiciária” e a “apuração de infrações penais”: “§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Note-se que o texto constitucional utiliza a conjunção “e” para separar as “funções de polícia judiciária” da função de “apuração de infrações penais”, demonstrando claramente que se tratam de duas funções diferentes.
50. Segundo explica Renato Brasileiro[13], “o disposto no art. 4º do CPP, segundo o qual ‘a polícia judiciária tem por objeto a apuração das infrações penais e da sua autoria’, essa terminologia não foi recepcionada pela Constituição Federal que diferencia a função de polícia judiciária da função de apurar infrações penais”. Prossegue o autor:
Destarte, por funções de polícia investigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais. A expressão polícia judiciária está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc. Por se tratar de norma hierarquicamente superior, deve, então, a Constituição Federal, prevalecer sobre o teor do Código de Processo Penal (art. 4º, caput).
51. Douglas Fischer[14], da mesma forma, diferencia a função de polícia judiciária da função de apuração de infrações penais, a partir da leitura do texto constitucional:
Funções de polícia judiciária são diversas de atribuições investigatórias. Não só pela compreensão sistêmica do ordenamento – que se vem defendendo insistentemente – como também, complementarmente, da própria leitura da Constituição, que, no §4º do mesmo art. 144, estipula claramente a diferenciação entre ambas.
52. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou pela diferenciação da função de polícia judiciária e da função de investigação penal:
Função de polícia judiciária e função de investigação penal: uma distinção conceitual relevante, que também justifica o reconhecimento, ao Ministério Público, do poder investigatório em matéria penal […]. (STF, Processo HC 89.837/DF, Relator: Ministro Celso de Mello, 2ª Turma, Data de Julgamento: 20/10/2009, Publicação no DJ: 20/11/2009).
53. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), n/a mesma linha, também se manifestou pela distinção entre a função de polícia judiciária e a função de apurar infrações penais (função investigatória):
Essa função de polícia judiciária qual seja, a de auxiliar do Poder Judiciário, não se identifica com a função investigatória, isto é, a de apurar infrações penais, bem distinguidas no verbo constitucional, como exsurge, entre outras disposições, do preceituado no parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal […]. (STJ, RESP Nº 332.172-ES, de 24/05/2007, Relator Ministro Hamilton Carvalhido. 6ª Turma, Data de Julgamento: 24/05/2007, Publicação no DJ: 04/08/2008).
54. Veja-se que a distinção entre polícia judiciária e apuração de infrações já consta na Lei nº 12.830, de 20/06/2013, que no seu artigo 2º dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, com o mesmo delineamento que foi dado pela Constituição Federal: 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
55. Assim, com a diferenciação expressa no texto constitucional entre a “função de polícia judiciária” e a função de “apuração de infrações penais”, a investigação de crimes no Brasil não é exclusiva sequer da Polícia Federal. Assim não há proibição constitucional para que outras instituições públicas investiguem, como o Ministério Público, as Comissões Parlamentares de Inquérito, a Receita Federal, etc.
56. O Código de Processo Penal também dispõe que não há exclusividade na função de apuração de infrações penais pelas polícias, uma vez que define que pode ser realizada por outras autoridades administrativas, conforme consta no art. 4º, parágrafo único: “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.
57. Assim, o Código de Processo Penal dispõe sobre o processo penal e a função de apuração de infrações penais, a qual chama de “polícia judiciária”, e essa função não é exercida somente pelo cargo de delegado de polícia, mas sim por todos os policiais federais e civis, não sendo esse argumento hábil a atribuir-lhe a prerrogativa exclusiva de “autoridade policial”. Existem inúmeras atribuições na Polícia Federal e Polícias Civis dos Estados que não são desempenhadas por delegados, mas sim por outros cargos policiais e em todas elas a autoridade policial do Estado se faz presente.
b) A referência do CPP à “autoridade e seus agentes”
58. Também a partir da restrita interpretação do Código de Processo Penal de 1941, há um antigo argumento de que somente o delegado de polícia seria autoridade policial e que os demais cargos policiais seriam “seus agentes”, a partir da interpretação do que dispõe o 301: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.
59. Essa é mais uma interpretação extensiva que não se sustenta porque “autoridade policial” são todos os agentes públicos policiais que executam as atividades de policiamento do Estado definidas na Constituição Federal. Ademais, a remota expressão “autoridades policiais e seus agentes” não retrata nenhuma situação técnica ou jurídica, pois na ordem constitucional o servidor público é vinculado ao Estado, não havendo que se falar de “um servidor e seu agente”, “uma autoridade policial e seu agente”, pois todos os policiais são agentes do Estado e detém o atributo de autoridade para exercer as suas atividades públicas.
60. Para resolver esse equívoco, tramita o Projeto de Lei do Senado nº 227/2012, de autoria do Senador Armando Monteiro, que apresenta o conceito de “autoridade policial” e de “agente da autoridade policial”, ao estabelecer regras e critérios mínimos para o registro de infrações penais e administrativas pelos órgãos de segurança pública no território nacional:
Art. 3º.
2º. Considera-se autoridade policial, para os fins previstos nesta Lei e para os dispositivos equivalentes previstos na legislação processual penal, todo servidor público civil ou militar que atuar nas atividades de policiamento ostensivo, preservação da ordem pública ou investigação criminal, sem distinção de nível hierárquico.
3º. Considera-se agente da autoridade policial, para os fins previstos nesta Lei e para os dispositivos equivalentes previstos na legislação processual penal, os agentes públicos ou privados que exercerem atividade complementar ou auxiliar aos órgãos de segurança pública através de proteção e guarda de bens, serviços e instalações públicas, ou na proteção e guarda de pessoas, valores, patrimônio ou atividades privadas, regulamentada por lei e autorizada por autoridade policial competente.
4º. Os militares das Forças Armadas, quando exercerem atividades próprias de segurança pública, para a garantia da lei e da ordem, nas hipóteses autorizadas e previstas em lei, passam à condição análoga de autoridade policial e deverão registrar as infrações nos termos desta Lei. (Grifo nosso)
61. Vê-se que a redação do Projeto de Lei do Senado nº 227/2012 está alinhada à Constituição Federal e às funções dos órgãos de polícia do país e por isso essa proposta virá a esclarecer o significado desses termos e atender ao princípio da eficiência definido no §7º do art. 144.
c) Distinção entre “poder de polícia” e “poder da polícia”
62. Há ainda antigo argumento apresentado de que somente o delegado de polícia seria autoridade policial porque os demais cargos policiais exerceriam somente o poder de polícia. Mas essa interpretação ampliativa mais uma vez não merece prosperar, pois todos os agentes públicos são dotados de “poder de polícia” e somente os agentes públicos policiais detêm a exclusividade do “poder da polícia” que é inerente ao atributo de “autoridade policial” do Estado.
63. O conceito de “poder de polícia” é apresentado pelo Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966):
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
64. Já o conceito de “poder da polícia” pode ser extraído a partir da concepção do conceito de polícia. Segundo Cretella Junior[15], polícia é o “conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades, quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem pública”. Assim, o conceito de “poder da polícia” pode ser definido como o atributo inerente aos agentes públicos dos órgãos policiais incumbidos da segurança pública, no cumprimento da função de policiamento do Estado. O “poder da polícia” é restrito aos agentes que compõem os órgãos policiais definidos no art.144 da Constituição Federal.
65. A doutrina divide o conceito de polícia em sentido objetivo e no sentido subjetivo. Do conceito de polícia no sentido objetivo (polícia-função) decorre o “poder de polícia”, que consiste na “atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-as aos interesses coletivos” e que é exercido pelos agentes dos órgãos públicos em geral, tais como órgãos de vigilância sanitária, de fiscalização das edificações, de defesa do consumidor, de segurança ambiental, etc. que exercem a atividade administrativa do Estado, sem serem órgãos policiais. Já do conceito de polícia no sentido subjetivo (polícia-corporação), decorre o “poder da polícia”, que é um poder especializado, inerente ao exercício da atividade policial, que detém o monopólio da força física legítima, para assegurar as finalidades do Estado, nos limites da lei[16].
66. Segundo Álvaro Lazzarini[17], o “poder de polícia” pode ser visto como abstrato e informante da atividade policial e o “poder da polícia” como a materialização do poder:
Como poder administrativo, assim, o Poder de Polícia, que legitima o poder da polícia e a própria razão dela existir, é um conjunto de atribuições da Administração Pública, como poder público e indelegáveis aos entes particulares, embora possam estar ligados àquela, tendentes ao controle dos direitos e liberdades das pessoas, naturais ou jurídicas, a ser inspirado nos ideais do bem comum, e incidentes não só sobre elas, como também em seus bens e atividades.
67. Cretella Junior[18]apresenta uma clara distinção entre polícia e poder de polícia, afirmando que “o poder de polícia é uma potencialidade, é alto em potência, ao passo que a polícia é uma realidade, é algo em ato. O poder de polícia legitima a ação da polícia e a sua própria existência“. O autor explica ainda que:
Polícia e poder de polícia são palavras que traduzem duas noções relacionadas e interdependentes, inconfundíveis, porque o poder de polícia é pressuposto ou antecedente lógico da polícia sendo o primeiro algo in potentia e o segundo algo in actu. Abstrato, o poder de polícia concretiza-se na polícia, força organizada visível, cuja ação se faz sentir no mundo e no mundo jurídico.
68. Como exemplo prático da distinção entre “poder de polícia” e “poder da polícia” é a situação de agentes públicos do órgão de vigilância sanitária que no exercício do “poder de polícia” pretendem interditar um estabelecimento comercial por vender mercadoria fora do prazo da validade, mas que são impedidos pelo proprietário de efetuarem o fechamento do estabelecimento e, que, por isso, solicitam o auxílio de policiais militares, os quais, mediante o exercício do “poder da polícia”, efetuam o fechamento do local pelo uso legítimo da força, inerente às suas funções de agente policial do Estado.
69. Portanto, por essa abordagem, os agentes públicos policiais, por exercerem as atribuições dos órgãos de polícia definidos no art. 144 da Constituição Federal, detém o “poder da polícia” inerente ao monopólio da força física legítima do Estado, imposta nos limites da lei[19] e por isso são “autoridades policiais”.
d) A “autoridade policial” nas Leis nº 12.830/2013 e nº 13.047/2014
70. A recente Lei nº 12.830/2013 definiu que ao delegado de polícia cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento: “ 2º, §1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais” (grifo nosso).
71. Observe-se que a redação do art.2º, §1º da Lei nº 12.830/13 não atribui ao cargo de delegado de polícia a exclusividade do termo “autoridade policial”, até porque seria inconstitucional. A expressão “na qualidade de” é sinônimo de “enquanto”, “como”, e por isso o parágrafo §1º pode ser lido como “Ao delegado de polícia, enquanto autoridade policial…”. Ou seja, a expressão “na qualidade de” constante nessa lei, somente ressalta o atributo de autoridade policial do delegado de polícia, sem excluí-lo dos demais policiais integrantes da carreira policial federal.
72. Da mesma forma, a Lei nº 13.047/2014 (que altera a Lei nº 9266/96 que reorganiza as classes da Carreira Policial Federal), também não limita a autoridade policial ao cargo de delegado de polícia federal quando dispõe: “ 2º-A. Parágrafo único. Os ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado”. Ou seja, todos os policiais, federais e civis, que desempenham atividades de polícia judiciária da União são autoridades policiais.
73. Ademais, como demonstrado, a “função de polícia judiciária” (CF, art.144, §1, IV) é inerente ao cumprimento de ordens do Poder Judiciário, atividade que é desenvolvida por todos os cargos da carreira policial federal. Aliás, todos também desenvolvem a função de apuração de infrações penais ou função polícia investigativa (CF, art.144, §1, I), a função de polícia administrativa (CF, art.144, §1, II) e a função de polícia de fronteiras ou soberania (CF, art.144, §1, III), exercendo atividades relativas às atribuições legais de seus cargos. Ressalte-se, porém, que nenhum cargo da carreira policial federal têm suas atribuições definidas em lei.
74. A constitucionalidade da Lei nº 12.830/2013 está sendo questionada por três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal: ADI 5043, impetrada pela Procuradoria Geral da República; ADI 5073 – impetrada pela Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol) e ADI 5059, impetrada pela Associação Nacional das Operadoras Celulares – ACEL. Da mesma forma, foi impetrada pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB) representando a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), a ADI 5364 que contesta a também a constitucionalidade da Lei n° 13.047/2014. Em todas essas ações se contestam as violações aos preceitos positivados na Constituição Federal para a segurança pública e à inconstitucionalidade de atribuir ao cargo de delegado de polícia competências constitucionais de outros agentes políticos e servidores policiais.
Conclusão
75. A “autoridade policial” é atributo indissociável e irrenunciável de todos os agentes públicos policiais que integram dos órgãos de polícia definidos no art. 144 da Constituição Federal e que concretizam o poder do Estado na atividade de policiamento do País.
76. Diante disso, não pode o legislador ordinário retirar o atributo de autoridade policial dos agentes públicos policiais para restringi-lo somente a um cargo policial (cargo de delegado de polícia), pois violaria os princípios da isonomia e da igualdade positivados no art. 5°, caput, do texto constitucional, bem como a supremacia da Constituição, uma vez que não foi vontade do Constituinte Originário atribuir a exclusividade da autoridade policial ao cargo de delegado de polícia.
77. Por esses fundamentos e ainda com base no princípio da eficiência, a Federação Nacional dos Policiais Federais – Fenapef postula pela rejeição dos dispositivos dos Projetos de Lei nº 6.433/2013 e 07/2016 que visam retirar o atributo de “autoridade policial” dos cargos policiais para restringi-lo somente ao cargo de delegado de polícia.
Brasília, 21 de setembro de 2016.
Bel. LUIS ANTÔNIO DE ARAÚJO BOUDENS
Presidente da Fenapef
Bela. MAGNE CRISTINE CABRAL DA SILVA
Diretora de Comunicação da Fenapef
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[2] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo, SP: Malheiros, 2008.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2004.
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[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010
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[8] JESUS, Damásio E. de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São Paulo: Saraiva, 2010.
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[10] JESUS, Damásio E. de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São Paulo: Saraiva, 2010.
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[15] CRETELLA, José Júnior. Curso de direito administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
[16] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Editora Malheiros: São Paulo, 2006.
[17] LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
[18] CRETELLA, José Júnior. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª ed. Editora Malheiros: São Paulo, 2006.
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