Fonte: VioMundo
Secretaria de Estado da Segurança Pública
Polícia Civil do Estado de São Paulo
Dependência: 08°
Boletim N°: 1539/2014, Iniciado: 22/02/2014 22:52hs e Emitido: 23/02/2014 00:23hs
Histórico:
Comparecem os Policiais Militares apresentando as partes acima descritas e informando que nesta data estavam em operação policial, visando coibir a ação delituosa perpetrada por grupos de badernistas; sendo que as pessoas acima qualificadas participavam de manifestação pelo centro de São Paulo.
Segundo os militares, em determinado momento da manifestação, ocorreu que um grupo de manifestantes, veio a causar danos ao patrimônio público e privado, muitos deles utilizando objetos de potencialidade lesiva, o que obrigou a intervenção dos Policiais. No momento em que foram efetuar a detenção dos manifestantes que praticavam as depredações, esses se misturaram a outros que também encontravam-se pelo local, sendo necessário retê-los para a identificação de tais desordeiros.
Efetuada a separação pelos Policiais Militares dos que efetivamente se envolveram nos atos denunciados, os que apenas participavam das manifestações foram aqui trazidos a fim de se aferir a possibilidade de que algum deles constasse como procurado na Justiça.
Aqui, feita a identificação dos manifestantes, na presença de inúmeros advogados, dentre eles o acima qualificado, e se a comprovação que não houve a participação de nenhum deles nos atos de vandalismo e/ou outros delitos, bem como em face de não haver nenhuma restrição criminal contra eles, foram, ao final, dispensados.
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por Thiago Scatena, via Facebook
Esta é a explicação que consta no Boletim de Ocorrência, número 1539/2014, contra a minha pessoa.
No dia 22 de fevereiro, às 18:00, eu e praticamente todos os outros manifestantes do 2° Grande Ato Contra a Copa, fomos ordenados a sentar no asfalto e ficamos retidos em um cordão formado de Policiais Militares, munidos de escudos e cassetetes.
Sem nenhuma informação do porque da atitude, ficamos sentados…
Como é de costume, gritos, caos, pessoas chorando, sons de palavras de “ordem”, xingamentos dos Policiais Militares para os manifestantes e dos manifestantes para os Policiais Militares, foram ecoando e desaparecendo na chuva fina que precipitou a cair no asfalto do centro de São Paulo.
Nós, os manifestantes sentados, observávamos atônitos a PM recolher um a um os nossos pares.
Primeiro os manifestantes vestidos de preto, depois os manifestantes com camisetas vermelhas, depois os que usavam camisetas brancas, depois os que estavam com camisetas, depois os sem camisetas…
Também atônitos, vimos a PM restringir o uso de máquinas fotográficas e câmeras celulares.
Apreenderam algumas das máquinas dos manifestantes. Não queriam gravações.
Ao meu lado, um repórter da Folha, bem identificado com um cartão pendurado no pescoço — o também jovem Reynaldo Turollo Jr — faz seu papel profissional e grava o momento. O também jovem Reynaldo estava com a mesma sensação de terror que eu e todos os manifestantes sentíamos, sentados.
Porém, Reynaldo foi logo “fagocitado” pelo cordão policial, de maneira bastante violenta, autoritária e ilegítima; ação costumeira das Instituições Militares.
Possivelmente, meia hora ou mais de um chá de cadeira asfáltica, foi o meu momento de ser “fagocitado”.
A Polícia Militar mandou-me levantar, ergui-me com o meu Registro Geral em mãos, fui revistado e encaminhado para um caminhão azul da Polícia Militar.
Apreenderam meu RG, e logo, fui ordenado a sentar, ao fundo, na janela, de vista para a entrada do metrô Anhagabáu.
De lá vi o tamanho do contingente policial. Eram muitos capacetes brancos. E já alguns caminhões azuis da corporação militar. Azul e branco, cores brandas e agradáveis.
Quando o ônibus ficou cheio, alguns manifestantes foram ordenados a sentar no corredor.
Como de costume, a Polícia Militar não forneceu informações, e como de costume, as atitudes de escracho, de humilhação, de machismo e racismo, de autoritarismo físico, foram constantemente usadas por todos os Policiais Militares da operação.
Notei neste momento, que uma ferramenta bastante eficaz dos Policiais Militares é justamente o assédio moral, o abuso de autoridade e a humilhação física e verbal.
Gerar um sentimento de pânico, terror e depressão humana. Nem preciso dizer que o “clima” do busão não era dos mais animados.
Com o ônibus lotado, contei 28 manifestantes no meu ônibus. Vi ainda manifestantes correndo da Polícia Militar e se escondendo na entrada do Metrô.
Ficamos meia hora, ou mais, dentro do ônibus. Não podíamos gravar, nem filmar, mas a Polícia Militar nos filmava através de um cinegrafista da Instituição.
Zoom’s eram dados na nossa cara.
Quando nosso transporte (acredito que não era bem este tipo de transporte público que o Movimento Passe Livre reivindicou) finalmente partiu, percebi como são transportados os presos do nosso país.
A intenção do condutor do ônibus não é a integridade física do transportado, mas sim sua eficiência e velocidade, ou seja, detentos e presos, como de costume, são tratados como bois.
No momento do transporte, os manifestantes do corredor, foram ordenados a se levantar, e se segurar onde podiam.
Em pé, eu era um dos jovens do corredor. Estava tão enfurecido com a forma, atitude, palavras e surrealismo da situação, que comecei a olhar diretamente nos olhos dos cinco Policiais Militares presentes.
Três deles me ignoravam, um deles me encarou, bradejou algo, e virou os olhos. E um, o mais violento e grosseiro, não desviou por momento algum seus olhos. Nem eu. Foi uma disputa silenciosa de apoderação do momento.
Vale me apresentar: tenho 1,90 de altura, sou loiro de olhos azuis, logo, tenho uma proteção racial implícita ao meu lado. Em um momento de tensão, o Policial Militar brada “Não olhe para mim! Pare de olhar para mim! O quê você está olhando?”; resisti ao meu impulso de mandá-lo à merda, e respondi “Estou olhando um nada…”.
Em seguida o tal Polícia Militar vira para um companheiro de farda e diz em alto e bom som “Esse mauricinho merece levar um tapa na cara”.
Fomos direto para a 1° Delegacia de Polícia, na Rua da Glória, na Sé. Paramos, e quem estava em pé, foi ordenado a sentar.
Um rapaz, bastante novo, sofreu um ataque de pânico, foi humilhado pelos Policias Militares, e realmente “embranqueceu”.
Vale lembrar a frase proferida em alto e bom som pelo mesmo Policial Militar que me encarava, ao rapaz em estado de pânico: “Na hora de protestar, você não passa mal!”
Com frases e argumentos assim, é realmente impossível dialogar com os Policiais Militares. Outro rapaz queria muito urinar. Não podia, é claro, tinha que esperar chegar à Delegacia.
Na parada, de mais dez minutos, os Policiais Militares liberaram o rapaz em estado de Pânico para descer, acompanhado de uma amiga, também jovem, para tomarem um ar. Não vi se o rapaz sofreu mais agressões verbais e humilhações, mas como é de costume, foi ordenado a sentar na calçada. Iríamos mudar de Delegacia de Polícia, pelo visto a 1° DP estava lotada de manifestantes.
Mais uma vez, quem estava de pé foi ordenado a sentar no corredor, o rapaz em pânico voltou com a amiga, e partimos. Mais uma vez um transporte bovino, costumeiro.
O Policial Militar, vez em outra, me encarava, e eu retribuía os olhares irados e ameaçadores. Chegamos por fim, por volta das 21:30, nas dependências longínquas do 8° DP, no Brás. Quem estava em pé, foi ordenado a sentar.
Os Policiais Militares fizeram uma contagem rápida, perguntaram nomes, informações provenientes dos RG’s apreendidos. Mais alguns bons minutos de chá de cadeira. Foram chamados os manifestantes em grupos de quatro.
Eu fui logo chamado e o mesmo Policial Militar que me encarava fez, do lado de fora do ônibus, em frente à delegacia lotada, minha averiguação. Perguntou meus dados, meus números, minha profissão, meus contatos e, por fim, perguntou a minha versão do ocorrido.
Respondi: “Estava no protesto, vocês chegaram, vocês mandaram eu sentar e me puseram no camburão e estou aqui agora.”
Complementei que não havia entendido absolutamente nada do motivo da minha prisão. O mesmo Policial Militar respondeu: “Isto não é um camburão, porque você não foi algemado.”
Percebi o abismo entre a minha forma de pensamento e a do Policial Militar, logo silenciei. Depois ele pediu para eu assinar o documento. Respondi que somente assinaria algo em presença dos meus advogados. É incrível como dizer a palavra “advogado” causa um extremo desconforto em um Policial Militar, então vale a pena repetí-la ao infinito.
Ordenaram a minha volta ao ônibus e, como de costume, ordenaram-me a sentar. Sentei, e logo me chamaram, com mais três manifestantes para efetuar o Boletim de Ocorrência. Levantei e entrei.
O ambiente da 8° DP era bastante surreal: paredes tons pastéis, alguns bêbados, alguns bolivianos, misturados com 77 manifestantes, todos jovens e adolescentes.
O ambiente burocrático desse lugar, cheirando a café fresco, misturado a gritos de manifestantes inconformados, com advogados pró-manifestantes, esbaforidos, e com delegados carregando pistolas na cueca e brasões dourados no pescoço, extrapolou um sentido surreal: ri do realismo-cômico do momento.
Fim da ação da Polícia Militar e começo da ação burocrática da Instituição Militar. Sem a burocracia é impossível uma Instituição se legitimar, e no caso de uma Delegacia de Polícia a burocracia tem um peso fundamental.
Recebi meu RG de volta e fui depor. Vale lembrar que os pertences apreendidos, como as câmeras fotográficas, foram também devolvidos. Um educado escrivão solicitou que me sentasse, e tomou nota dos meus documentos, meus dados, meus contatos, minha profissão, tudo o de costume.
Fui “qualificado” pela Delegacia de Polícia. Ao fim, perguntei qual era o procedimento para gerar uma denúncia contra a atuação de Policial Militar da operação, no caso, o famigerado Policial Militar que me encarou. Espanto! Pelo visto os manifestantes não fazem B.O.’s contra as atitudes ilegais dos agentes do Estado.
O escrivão chamou o Doutor Delegado, que, prontamente, perguntou se eu sabia o nome dos Policiais Militares envolvidos, respondi que sim.
Vale ressaltar a importância de marcar os nomes de todos os Policiais Militares envolvidos, e melhor fazê-lo de maneira discreta, haja vista que a identificação é Lei, mas como de costume, não é obedecida.
O Dr. Delegado, um senhor de terno, rapidamente tentou me persuadir de maneira educada a não fazer o B.O, disse que eu não havia feito nada ilegal.
Avisou também que demoraria bastante para eu poder fazer meu B.O, já que a delegacia estava lotada.
Disse que faria do mesmo jeito, afinal já havia tomado tantos chás-de-cadeira. Com tal processo, vi que já eram 22h52min.
O advogado pró-manifestantes, também jovem e bastante ocupado, disse que bastaria eu depor para fazer o B.O contra o Policial Militar que me ameaçara.
Perguntei se meu B.O acarretaria um processo administrativo. O advogado respondeu que somente a Instituição poderia abrir um processo administrativo contra meu agressor.
Esse é um dos motivos maiores para se questionar a legitimidade desta Instituição: o formato de regulação das suas ações é questionado, averiguado e processado pelo mesmo corpo institucional. No sentido que esta Polícia é de estatuto Militar, possui parâmetros de regulação de cunho Jurídico-Militar, distante da nossa regulação Jurídico-Civil.
Por isso faz-se tão necessário as mudanças estruturais e constitucionais do seu fundamento, oriundo do período ditatorial militar de 1964.
Esperei no corredor que ligava a entrada da 8°DP até o local que faria o B.O contra o Policial Militar. Esperei sentado. Foi-me oferecido água e café. A água aceitei, já o café recusei. Sentado no corredor das dependências, esperei.
O mesmo Dr. Delegado disse que eu podia sair da 8° DP caso quisesse, poderia fumar um cigarro e me ver livre do ambiente. Respondi que preferiria permanecer sentado, disse que estava com medo dos Policiais Militares presentes fora da Delegacia de Polícia. Esperei até às 00:46 min. Em um determinado momento da espera, um Policial Militar da 8° DP, e que acredito não fez parte da operação in loco, perguntou se eu era um BlackBlock, respondi que não, disse que era um “mauricinho mesmo…”.
Quando todos os manifestantes, bêbados, bolivianos foram ouvidos e “qualificados”, foi a minha vez de entrar. Entrei na saleta, com o mesmo escrivão, em presença do mesmo Dr. Delegado, sem o advogado pró-manifestantes, e começamos a fazer o meu B.O.
Como de costume, o Dr. Delegado argumentou sobre os protestos, com os argumentos de sempre: depredação, baderneiros, vândalos, etc…
Respondi que a deslegitimação de todo um protesto pacífico e sobre os parâmetros constitucionais não pode ser efetuado com argumentos tão simplistas e reducionistas.
Perguntei do porque da prisão de todos os manifestantes. Respondeu ele que era uma detenção para qualificação, e era para evitar depredação pública e privada.
Respondi que caso este formato de Operação Policial vigorasse, a Secretaria de Estado da Segurança Pública teria direitos inconstitucionais de deter quem quisesse, como exemplo, entrar em todas as casas de um bairro, para encontrar um foragido em uma delas. Inocentemente esqueci que isso ocorre diariamente nas periferias e favelas do país.
Formatei meu B.O. Fiz que eu constasse como vítima. Que eu tinha medo da minha integridade física em futuros protestos. Fiz que no B.O constasse a agressão verbal e ameaça de acordo com meu testemunho, “esse mauricinho merece levar um tapa na cara”. Foi constatado.
Depois bati um papo mais descontraído com o Dr. Delegado, disse que já passará das 01:04 min. e que não havia metrô aberto, e completei que era um absurdo uma cidade como São Paulo não ter metrô 24hrs. Chegaria uma carona de um amigo logo mais.
Ainda bem que tinha condições de pagar um taxi, ou chamar um amigo motorizado, porque a grande maioria dos manifestantes não tinha esta facilidade. Mais uma situação surreal ocorrerá antes da minha carona chegar.
Estamos eu e o Dr. Delegado fora da 8°DP, em uma delegacia agora taciturna. O mesmo escrivão grita de dentro da delegacia “Oh Doutor, estamos com um [caso de lei] Maria da Penha aqui, o cara é funileiro, quanto eu ponho no processo?”.
O Dr. Delegado responde prontamente: “Põe 3 salários mínimos aí.”
O Dr. Delegado se vira para mim e complementa: “Temos que ser justos, porque se fosse um empresário de Lamborghini eu poria mais alto o valor.”
Só me restou concordar, sentar e esperar pela minha carona…
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