A questão do referendo
“Não é à toa que o jornalismo está perdendo
leitores, a nova geração não tem opiniões
fortes, o país não possui mais projeto e nossas
discussões intelectuais se tornaram silenciosas”
Até hoje recebo reclamações de leitores sobre uma capa de VEJA do ano passado a favor do NÃO à proibição do comércio de armas e munição. As reclamações normalmente tomam a seguinte linha de raciocínio: “Uma revista não pode tomar partido ou tirar uma conclusão pelos seus leitores, induzindo-os a votar de uma forma e não de outra. Jornais e revistas devem se limitar a fornecer os fatos, pró e contra, e deixar os leitores tirar sua conclusão”. Mas existe outro ponto de vista.
O jornalismo teve inúmeras origens, uma das quais foi o jornalismo panfletário dos partidos políticos. Todo partido político possuía seu jornal, em que defendia com unhas e dentes sua visão de mundo. Esses jornais se posicionavam fervorosamente a favor do SIM ou do NÃO nas várias questões sobre as quais o partido teria de decidir. Eles tinham opinião, a dos partidários, e quem comprava a publicação eram aqueles que pensavam como o partido e queriam se atualizar.
Se o jornal fosse sério, não ignoraria os argumentos da oposição, mas trataria logo de destruí-los, de uma forma oude outra. Esses jornais não tinham fins lucrativos; eram distribuídos gratuitamente ou mediante uma doação ao partido.
Com o capitalismo, surgiu um novo jornalismo, um jornalismo como negócio, com fins lucrativos. O objetivo passou a ser o de aumentar constantemente a base de leitores, e assim surgiu o conceito da necessidade de respeitar todas as opiniões, de perseguir uma imprensa liberal, democrática e pluripartidária.
A nova diretriz era não mais defender posição alguma, e sim fornecer os fatos e deixar os leitores decidir. Opiniões passaram a ser aquelas consideradas politicamente corretas pela sociedade, como “lutar pela democracia”, além da “beleza do altruísmo”, da busca da “solidariedade humana” e da “importância da educação”, bandeiras de todas as ideologias políticas sem distinção.
Analisemos o problema de outro ângulo. Hoje a classe média, a grande consumidora de informação e notícias, não tem tempo para nada. Não tem tempo para avaliar tudo o que está acontecendo no mundo e tirar suas próprias conclusões. Depende de jornais e revistas que analisem por ela, que tenham a mesma visão de mundo, que analisem os fatos da mesma forma que faria alguém de sua classe. Hoje em dia, são poucos os jornais que defendem os valores da classe média – ela é a grande esquecida de todos os partidos políticos, a grande prejudicada de todos os governos. Um veículo que atender a esse segmento prestará enorme favor a seu leitor e terá toda a publicidade e anúncios que quiser.
No referendo, 85% dos eleitores com mais de dez anos de instrução votaram efetivamente contra o artigo 35. Atribuir essa votação a VEJA é um elogio, mas leitores não são tão influenciáveis assim, e a maioria de nossos governantes, com tanta influência quanto, optou pelo SIM. Desagradar a uma parte dos leitores, entre os quais aqueles que vivem reclamando comigo, é o risco que se corre no jornalismo opinativo. Existe espaço no mundo para os dois tipos de jornalismo. Aquele que apenas apresenta as notícias e os fatos e aquele que, além disso, adota a epistemologia do leitor.
A primeira edição da Business Week, uma revista semanal de administração para a classe média, lançada seis semanas antes da crise de 1929, explicava sua filosofia editorial. “Sempre teremos um ponto de vista, uma opinião forte que nunca deixaremos de emitir.”
Sua primeira opinião “forte” foi que “a bolsa está supervalorizada, o mercado está totalmente psicológico e estamos preocupados com o futuro ajuste que está por vir”. É esse o tipo de jornalismo que ajuda o leitor a tomar boas decisões, em vez de noticiar no dia seguinte que “a bolsa caiu 4% sob forte realização de lucros”.
Não é à toa que o jornalismo está lentamente perdendo assinantes e leitores, a nova geração não tem opiniões fortes, o país não possui mais projeto e nossas discussões intelectuais se tornaram silenciosas.
Stephen Kanitz é administrador por Harvard (www.kanitz.com.br)
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